Se tudo é vaidade
para o Coélet, “tudo é cansaço” para o poeta, mesmo que se entregue ao prazer
de escrever um poema – raros, pelo que se deduz. E então as coisas parecem
margear um certo sentido de morte, frente à qual luta-se uma inglória e
ininterrupta pugna, para fazer nascer sempre o novo (ou pelo menos dar novos
créditos a um mundo que teima em perpetuar suas configurações).
A voz lírica medita
sobre uma realidade a transcorrer sob o domínio do agastamento, quando as sequentes
circunstâncias a fatos que se presumem luminares na vida de um ser humano – o amor
a encimar o rol – convergem para uma resenha de dor e de solidão, fazendo pouco
caso dos princípios albergados pelos tenazes “heróis” do quotidiano.
J.A.R. – H.C.
Felipe Fortuna
(n. 1963)
Meditação
Quando um dia, ao
sentir-me demolido,
aceitar que no mundo
tudo é morte,
e que nem mesmo o
choro de um amigo
vale pagar bebida e amargo
porre,
nosso silêncio a
dois, feito de reza,
vai dissolver o ferro
a que se entrega.
O amor viveu somente
um desses dias
(por acaso, entre
arbustos desnudados);
se foi pequeno ou
grande, se doía,
secreto dissolveu-se
nos retratos.
A solidão é estranha
se há desejos.
O corpo é musical no
lado esquerdo.
Tudo é cansaço. Ler,
viajar, cansaço.
Escrevo com descrença
dois, três poemas.
De madrugada, acordo
o sono falso
e invado uma palavra
que me queima.
Todos os dias leio
nos jornais,
que a noite anterior
caiu no mar.
Não me sinto bem:
tenho sempre culpas.
Tenho discursos,
bombas e massacres,
amigos já cinzentos
pelas lutas,
muitas frases e
heróis que o tempo abate.
Os bares são
noturnos, mas os homens
se embriagam de
manhã, com novos nomes.
A arte da meditação
(Anton Ovchinnikov:
artista russo)
Referência:
FORTUNA, Felipe.
Meditação. In: BRAGA, Rubem. A poesia é necessária. Organização de André
Seffrin. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2015. p. 178.
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