Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Felipe Fortuna - Meditação

Se tudo é vaidade para o Coélet, “tudo é cansaço” para o poeta, mesmo que se entregue ao prazer de escrever um poema – raros, pelo que se deduz. E então as coisas parecem margear um certo sentido de morte, frente à qual luta-se uma inglória e ininterrupta pugna, para fazer nascer sempre o novo (ou pelo menos dar novos créditos a um mundo que teima em perpetuar suas configurações).

 

A voz lírica medita sobre uma realidade a transcorrer sob o domínio do agastamento, quando as sequentes circunstâncias a fatos que se presumem luminares na vida de um ser humano – o amor a encimar o rol – convergem para uma resenha de dor e de solidão, fazendo pouco caso dos princípios albergados pelos tenazes “heróis” do quotidiano.

 

J.A.R. – H.C.

 

Felipe Fortuna

(n. 1963)

 

Meditação

 

Quando um dia, ao sentir-me demolido,

aceitar que no mundo tudo é morte,

e que nem mesmo o choro de um amigo

vale pagar bebida e amargo porre,

nosso silêncio a dois, feito de reza,

vai dissolver o ferro a que se entrega.

 

O amor viveu somente um desses dias

(por acaso, entre arbustos desnudados);

se foi pequeno ou grande, se doía,

secreto dissolveu-se nos retratos.

A solidão é estranha se há desejos.

O corpo é musical no lado esquerdo.

 

Tudo é cansaço. Ler, viajar, cansaço.

Escrevo com descrença dois, três poemas.

De madrugada, acordo o sono falso

e invado uma palavra que me queima.

Todos os dias leio nos jornais,

que a noite anterior caiu no mar.

 

Não me sinto bem: tenho sempre culpas.

Tenho discursos, bombas e massacres,

amigos já cinzentos pelas lutas,

muitas frases e heróis que o tempo abate.

Os bares são noturnos, mas os homens

se embriagam de manhã, com novos nomes.

 

A arte da meditação

(Anton Ovchinnikov: artista russo)

 

Referência:

 

FORTUNA, Felipe. Meditação. In: BRAGA, Rubem. A poesia é necessária. Organização de André Seffrin. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2015. p. 178.

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