O autor chileno imagina
uma cena hipotética em cujo transcurso dialoga com o sacerdote e poeta
nicaraguense acerca das possibilidades de salvação, à luz da doutrina católica,
para um elenco de sujeitos que, à média de avaliação da sociedade, não teria
nenhumas chances de redenção, a saber, os marginalizados, os discriminados e os
que, como Cardenal – um seguidor da denominada “Teologia da Libertação” –,
posicionam-se mais à esquerda do espectro político.
Mas o que Bolaño
perscruta por meio do cenário que logo adiante se levanta não passa muito
próximo do que se poderia apreender como uma marcha de redenção com receptividade
incondicional, senão como uma acolhida austera: alguém poderia aludir ao lago congelante
do nono círculo do Inferno, de Dante. (rs)
J.A.R. – H.C.
Roberto Bolaño
(1953-2003)
Ernesto Cardenal y yo
Iba caminando, sudado
y con el pelo pegado
en la cara
cuando vi a Ernesto
Cardenal que venía
en dirección
contraria
y a modo de saludo le
dije:
Padre, en el Reino de
los Cielos
que es el comunismo,
¿tienen un sitio los
homosexuales?
Sí, dijo él.
¿Y los masturbadores
impenitentes?
¿Los esclavos del
sexo?
¿Los bromistas del
sexo?
¿Los sadomasoquistas,
las putas, los fanáticos
de los enemas,
los que ya no pueden
más, los que de verdad
ya no pueden más?
Y Cardenal dijo sí.
Y yo levanté la vista
y las nubes parecían
sonrisas de gatos
levemente rosadas
y los árboles que
pespunteaban la colina
(la colina que hemos
de subir)
agitaban las ramas.
Los árboles salvajes,
como diciendo
algún día, más temprano
que tarde, has de venir
a mis brazos gomosos,
a mis brazos sarmentosos,
a mis brazos fríos.
Una frialdad vegetal
que te erizará los
pelos.
Ernesto Cardenal
(1925-2020)
Ernesto Cardenal e eu
Estava caminhando,
suado e com o cabelo grudado
ao rosto,
quando vi Ernesto
Cardenal se aproximando
na direção contrária
e, a modo de
saudação, lhe disse:
Padre, no Reino dos
Céus
o que é o comunismo,
há um lugar para os
homossexuais?
Sim, disse ele.
E para os
masturbadores impenitentes?
Para os escravos do
sexo?
Para os humoristas do
sexo?
Para os
sadomasoquistas, as prostitutas, os obcecados
por enemas (*),
para os que já não
aguentam mais, os que realmente
já não aguentam mais?
E Cardenal disse que
sim.
E eu olhei para cima:
as nuvens pareciam
sorrisos de gatos
levemente rosados
e as árvores que
pontilhavam a colina
(a colina que temos
que escalar)
agitavam os seus
ramos.
As árvores selvagens,
como se dissessem:
algum dia, mais cedo
ou mais tarde, hás de vir
aos meus braços
gomosos, aos meus braços sarmentosos,
aos meus braços
frios. Uma frieza vegetal
que deixará teus
cabelos em pé.
Nota:
(*). Enemas: lavagens
intestinais.
Referência:
BOLAÑO, Roberto. Ernesto Cardenal y yo. In: __________. Poesía reunida. Prólogo de Manuel Vilas. 1. ed. Madrid, ES: Alfaguara, 2018. p. 391.
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