Na cena de um hipotético
teatro, em que o ente lírico se observa distinto dos demais homens, surgem as
elucubrações do falante sobre a dor do mundo, um superlativo em relação ao que
se passa na realidade, dada a sua exuberante imaginação – o corpo e suas partes
externando formas pungentes de vulnerabilidades.
Mas logo o poeta
sustenta a hipótese condicional – verossímil, aliás – de que alguém possa “ferver”
na mesma água em que ele ferve. Afinal, todos compomos um gênero, sendo menos custoso
que se sustente a máxima do sábio romano, de que nada do que seja humano se nos
apresenta estranho. E logo se põe a arrematar o vate: um homem em tal contexto,
“coitado, só serve para fio de nervo”.
J.A.R. – H.C.
António Gedeão
(1906-1997)
Teatro Anatómico
O certo é que a
realidade real
difere bastante da
realidade pensada.
Os homens não esperam
mesmo nada.
Eu é que espero, e
esse é todo o mal.
Agravo a dor do mundo
imaginando-a;
coro de sangue e
febre os olhos distraídos;
construo a voz
amarga, implico-a de sentidos,
pisando-a,
triturando-a, macerando-a.
O Mundo é corpo. É um
corpo sem forma nem limites.
E como corpo, nele,
uns são carne, outros
pele,
outros ventre,
repleto de apetites,
outros sexo, outros
boca, outros retina,
outros músculo tenso
e força bruta.
Cada um seu sistema
determina.
Cada qual a seu modo
se executa.
Mas se um homem ferve
na água em que eu
fervo,
coitado, só serve
para fio de nervo.
Em: “Máquina de Fogo”
(1961)
Carne e Osso
(Rafael Silveira:
artista paranaense)
Referência:
GEDEÃO, António.
Teatro anatómico. In: __________. Poesias completas: 1956-1967. 7. ed.
Lisboa, PT: Portugália, 1978. p. 229-230. (Coleção ‘Poetas de Hoje’; v. 17)
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