Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

António Gedeão - Teatro Anatómico

Na cena de um hipotético teatro, em que o ente lírico se observa distinto dos demais homens, surgem as elucubrações do falante sobre a dor do mundo, um superlativo em relação ao que se passa na realidade, dada a sua exuberante imaginação – o corpo e suas partes externando formas pungentes de vulnerabilidades.

 

Mas logo o poeta sustenta a hipótese condicional – verossímil, aliás – de que alguém possa “ferver” na mesma água em que ele ferve. Afinal, todos compomos um gênero, sendo menos custoso que se sustente a máxima do sábio romano, de que nada do que seja humano se nos apresenta estranho. E logo se põe a arrematar o vate: um homem em tal contexto, “coitado, só serve para fio de nervo”.

 

J.A.R. – H.C.

 

António Gedeão

(1906-1997)

 

Teatro Anatómico

 

O certo é que a realidade real

difere bastante da realidade pensada.

Os homens não esperam mesmo nada.

Eu é que espero, e esse é todo o mal.

 

Agravo a dor do mundo imaginando-a;

coro de sangue e febre os olhos distraídos;

construo a voz amarga, implico-a de sentidos,

pisando-a, triturando-a, macerando-a.

 

O Mundo é corpo. É um corpo sem forma nem limites.

E como corpo, nele,

uns são carne, outros pele,

outros ventre, repleto de apetites,

outros sexo, outros boca, outros retina,

outros músculo tenso e força bruta.

Cada um seu sistema determina.

Cada qual a seu modo se executa.

 

Mas se um homem ferve

na água em que eu fervo,

coitado, só serve

para fio de nervo.

 

Em: “Máquina de Fogo” (1961)

 

Carne e Osso

(Rafael Silveira: artista paranaense)

 

Referência:

 

GEDEÃO, António. Teatro anatómico. In: __________. Poesias completas: 1956-1967. 7. ed. Lisboa, PT: Portugália, 1978. p. 229-230. (Coleção ‘Poetas de Hoje’; v. 17)

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