Rosa descreve de um
modo bastante peculiar a luz que incide em Lisboa, uma luz que se protrai do nascente
ao poente, contemplável a partir de seus miradouros, praças e colinas, ou mesmo
perscrutada no “esplendor do Tejo”, entre acordes de “instrumentos voluptuosos”
que imergem os citadinos “na materna indolência do mundo”.
Lisboa é isso, um
cenário luminoso que cativa o olhar, deixando-nos absortos, perdidos nos
rompantes de uma “percepção evanescente”, como se o langor fosse o estado
natural que dessa “suave rainha” recende, forçando-nos a desacelerar para bem
apreciar as suas singularidades, preservadas entre lindes de sol e mar.
J.A.R. – H.C.
António Ramos Rosa
(1924-2013)
Vemos através da
luz...
Vemos através da luz
o que a luz faz aparecer
e que sem ela seria
opaca sombra
Mas a luz de que
maneira a vemos se estamos nela
imersos
e é tão transparente
o seu fulgor
que é nas coisas onde
pousa que melhor a vemos
Mais do que a visão
que cinge e delimita quanto
vemos
a luz respira-se como
algo que nos é dado em
imediata oferenda
e se nela reparamos
não é com a atenção fixa
com que vemos as
coisas
mas com um olhar que
se espraia na sua indefinida
e fulgurante
evidência
em que se consuma e
renova continuamente aberta
e absorta
e não se detém porque
é o movimento de uma
percepção evanescente
Como qualificar a luz
de Lisboa que no entanto
sentimos tão peculiar
se a despojarmos das
casas e dos muros das praças
e dos pátios
das ruas e dos
passeios de pedras desenhadas
ou do largo esplendor
do Tejo?
Onde quer que seja
demora-se como uma ténue praia
e a sua delicadeza é
de uma transparente barca
que em si mesma
navega continuamente côncava
abrindo o mundo no
seu imperceptível movimento
Na plenitude
fulgurante do meio-dia
é o excesso cósmico
que ofusca e quase cega
erguendo em colunas
de mercúrio embriagado
o sonoro sangue dos
homens que caminham
sobre as pedras
claras como estilhas de luas
É então que ela vibra
como um grande órgão branco
abraçando a latitude
de uma praça ou de um rio
e incendiando o
estrépito dos carros e dos transeuntes
Quando entardece é
uma suave rainha reclinando-se
e sumptuosamente
flébil estendendo-se sobre o leito
do horizonte
incendiada por um
derradeiro fogo melancólico
em purpúreas faixas
azuladas
Nos pequenos pátios
solitários com uma árvore
de dourada placidez
cria a intimidade de
um claro-escuro de sossegada
concha
onde se pode ouvir o
murmúrio de uma fonte
ritmando a solidão
Sobre as casas aviva
ou esbate as cores como
um harmónio de água
e todas se combinam
numa melodia entre a sombra
e a claridade
ou como imóveis
chamas de um harmonioso incêndio
Entre as árvores em
alaranjados verdes azuis
ou dourados tons
vibra como um doce e
lento instrumento voluptuoso
num acorde que nos
insere na materna indolência
do mundo
Lisboa Vista do Rio
(Elena P. Gancheva:
artista búlgara)
Referência:
ROSA, António Ramos.
Vemos através da luz... In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO, Clotilde
Correia (Organização e nota prévia). Lisboa com seus poetas: coletânea.
Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 38-40.
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