Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 2 de setembro de 2023

António Ramos Rosa - Vemos através da luz...

Rosa descreve de um modo bastante peculiar a luz que incide em Lisboa, uma luz que se protrai do nascente ao poente, contemplável a partir de seus miradouros, praças e colinas, ou mesmo perscrutada no “esplendor do Tejo”, entre acordes de “instrumentos voluptuosos” que imergem os citadinos “na materna indolência do mundo”.

 

Lisboa é isso, um cenário luminoso que cativa o olhar, deixando-nos absortos, perdidos nos rompantes de uma “percepção evanescente”, como se o langor fosse o estado natural que dessa “suave rainha” recende, forçando-nos a desacelerar para bem apreciar as suas singularidades, preservadas entre lindes de sol e mar.

 

J.A.R. – H.C.

 

António Ramos Rosa

(1924-2013)

 

Vemos através da luz...

 

Vemos através da luz o que a luz faz aparecer

e que sem ela seria opaca sombra

Mas a luz de que maneira a vemos se estamos nela

imersos

e é tão transparente o seu fulgor

que é nas coisas onde pousa que melhor a vemos

Mais do que a visão que cinge e delimita quanto

vemos

a luz respira-se como algo que nos é dado em

imediata oferenda

e se nela reparamos não é com a atenção fixa

com que vemos as coisas

mas com um olhar que se espraia na sua indefinida

e fulgurante evidência

em que se consuma e renova continuamente aberta

e absorta

e não se detém porque é o movimento de uma

percepção evanescente

Como qualificar a luz de Lisboa que no entanto

sentimos tão peculiar

se a despojarmos das casas e dos muros das praças

e dos pátios

das ruas e dos passeios de pedras desenhadas

ou do largo esplendor do Tejo?

Onde quer que seja demora-se como uma ténue praia

e a sua delicadeza é de uma transparente barca

que em si mesma navega continuamente côncava

abrindo o mundo no seu imperceptível movimento

Na plenitude fulgurante do meio-dia

é o excesso cósmico que ofusca e quase cega

erguendo em colunas de mercúrio embriagado

o sonoro sangue dos homens que caminham

sobre as pedras claras como estilhas de luas

É então que ela vibra como um grande órgão branco

abraçando a latitude de uma praça ou de um rio

e incendiando o estrépito dos carros e dos transeuntes

Quando entardece é uma suave rainha reclinando-se

e sumptuosamente flébil estendendo-se sobre o leito

do horizonte

incendiada por um derradeiro fogo melancólico

em purpúreas faixas azuladas

Nos pequenos pátios solitários com uma árvore

de dourada placidez

cria a intimidade de um claro-escuro de sossegada

concha

onde se pode ouvir o murmúrio de uma fonte

ritmando a solidão

Sobre as casas aviva ou esbate as cores como

um harmónio de água

e todas se combinam numa melodia entre a sombra

e a claridade

ou como imóveis chamas de um harmonioso incêndio

Entre as árvores em alaranjados verdes azuis

ou dourados tons

vibra como um doce e lento instrumento voluptuoso

num acorde que nos insere na materna indolência

do mundo

 

Lisboa Vista do Rio

(Elena P. Gancheva: artista búlgara)

 

Referência:

 

ROSA, António Ramos. Vemos através da luz... In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO, Clotilde Correia (Organização e nota prévia). Lisboa com seus poetas: coletânea. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 38-40.

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