Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Juan Gelman - Medidas

Somos, em boa parte, a medida de nossos antepassados mais imediatos, dando continuidade à progênie familiar, quer assumamos quer não as influências, positivas ou negativas, que pais e avós infundiram em nossos rostos ou personalidades, com suas histórias de vida, legados, valores, orientações, conhecimentos tradicionais.

 

Neste poema, a figura do avô em um retrato observa o falante e lhe impõe pesadas raias, naquilo que se expressa por meio dos infortúnios que experimentara na Rússia, no gueto (observe-se, Gelman tinha ascendência judaica): uma figura austera, firme na busca por uma verdade que nem sempre podia ser expressa de forma desvelada, enquanto resoluto arquiteto de uma amurada de “nuncas”, com “braços” hábeis a assediar os de sua linhagem, o falante aí incluso.

 

J.A.R. – H.C.

 

Juan Gelman

(1930-2014)

 

Medidas

 

El abuelo me mira desde

la foto de siempre, me mira

desde el fondo de Rusia y otras desgracias.

Desde el ghetto me mira. Dicen que

escribió una carta a Dios para

que inundara las casas de trigo,

de vino y de pan ázimo en Pascua,

y ató la carta a la pata de un pájaro

que voló de país en país buscando el cielo.

Me mira con las ojeras lentas

de quien veló el espanto. Nunca

me levantó en sus brazos. Nunca

lo tuve, nunca

me tuvo, nunca

es la palabra entre los dos. Quiso

que la verdad paseara por la calle

y la cubrió con una máscara

para que la quisieran.

Esa máscara es su rostro en la foto.

Le habrá pedido a Dios que no

borre ni escriba nada porque

todo podía ser peor. La foto

está enferma, levanta

una humareda de brazos que no se encontrarán.

Empoza su linaje,

me sigue como un perro.

 

O Avô

(Vassily I. Zabashta: pintor ucraniano)

 

Medidas

 

A partir da foto de sempre

olha-me o avô, olha-me

a partir das entranhas da Rússia e outros infortúnios.

Olha-me a partir do gueto. Dizem que

teria escrito uma carta a Deus para

que inundasse as casas com trigo,

com vinho e com pão ázimo na Páscoa,

e amarrou a carta à perna de um pássaro

que voou de país em país em busca do céu.

Olha-me com as olheiras lentas

de quem velou o espanto. Nunca

ergueu-me em seus braços. Nunca

o tive, nunca

me teve, nunca

é a palavra entre os dois. Quis

que a verdade passeasse pela rua

e cobriu-a com uma máscara

para que a amassem.

Essa máscara é seu rosto na foto.

Terá pedido a Deus para que não

apague nem escreva nada, porque

tudo poderia ser pior. A foto

está doente, levanta

uma fumaceira de braços que jamais se encontrarão.

Empoça a sua linhagem,

segue-me como um cão.

 

Referência:

 

GELMAN, Juan. Medidas. In: __________. Poesía reunida. Tomo II: 1982-2010. 1. ed. Buenos Aires, AR: Seix Barral, 2012. p. 278-279. (‘Biblioteca Breve’)

Nenhum comentário:

Postar um comentário