O poeta de Itabira nos fala das coisas que remanescem na memória, enquanto história de vida de cada um sobre a terra: é o que nos sobra do passado, mesmo com todo o risco de a mente falsear a categórica realidade dos fatos – isto se nos dispusermos a crer que, deveras, estes possam existir, pois a julgar por Nietzsche, tudo são suas contingentes interpretações.
A rigor, o contexto em que imersas as coisas revela-se determinante para que firmemos uma recordação na mente: para Drummond, entretanto, tudo parece emergir em sua indefectível forma, diante de uma memória viva, como um empuxo a compilar cada momento haurido, sem vácuos a interpolar, sem o intercurso de ausências deliberadas a revelar paúras.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Resíduo
De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
– vazio – de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas
triunfantes
e sob ti mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Em: “A Rosa do Povo” (1945)
Violino e Candelabro
(Georges Braque: pintor francês)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de Andrade.
Resíduo. In: __________. Antologia poética. Organizada pelo autor.
Prefácio de Marco Lucchesi. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p.
320-323.
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