Este poema de Montale revela um fundo mergulho do poeta nos labirintos da imaginação, talvez em busca de uma revelação que venha à tona das águas marinhas num certo delta, presumivelmente às costas da Ligúria (IT) – tomadas como um foco fisicamente determinado –, explico-me melhor, em contraposição a um ímpeto recôndito assimilado pela memória, a pairar numa poética sobranceiramente metafísica.
Têm-se aí a exuberância da elocução, a sobriedade vocabular e o equilíbrio do ritmo mesclados a uma intrincada e ambígua sintaxe que não nos permite formar ideia exata sobre quem seria o “tu” a que se dirige o falante: se alguma força criativa, querubim, ou pessoa ausente. Nessa toada, em meio à névoa e à dissipação, os versos do poema acabam por expressar lamento e esperança – neste último caso, pela energia associável ao rebocador aproando de volta ao golfo.
J.A.R. – H.C.
Eugenio Montale
(1896-1981)
Delta
La vita che si rompe nei travasi
secreti a te ho legata:
quella che si dibatte in sé e par quasi
non ti sappia, presenza soffocata.
Quando il tempo s’ingorga alle sue dighe
la tua vicenda accordi alla sua immensa,
ed affiori, memoria, più palese
dall’oscura regione ove scendevi,
come ora, al dopopioggia, si riaddensa
il verde ai rami, ai muri il cinabrese.
Tutto ignoro di te fuor del messaggio
muto che mi sostenta sulla via:
se forma esisti o ubbia nella fumea
d’un sogno t’alimenta
la riviera che infebbra, torba, e scroscia
incontro alla marea.
Nulla di te nel vacillar dell’ore
bige o squarciate da un vampo di solfo
fuori che il fischio del rimorchiatore
che dalle brume approda al golfo.
Delta do Mekong
(Tvesha Singh: artista indiana)
Delta
A vida que se rompe e se transfunde
em segredo, eu a ti tenho ligada:
ela que se debate e nem parece
saber tua presença sufocada.
Quando o tempo se estanca nos seus diques
à dele alias tua história imensa,
e mais afloras, memória, evidente
da escura região onde desceste,
como de novo é denso, após a chuva,
nos ramos o verde, o cinabre nos muros.
Tudo ignoro de ti salvo a mensagem
muda que me sustenta no caminho:
se forma és ou fantasia em fumos
de um sonho te alimenta
o rio que enfebrece, turva, e cachoa
de encontro à maré.
Nada de ti nas horas do livor
que vacila ou rasga um facho de enxofre
afora o apito do rebocador
que das brumas aproa ao golfo.
Referência:
MONTALE, Eugenio. Delta / Delta.
Tradução de Renato Xavier. In: __________. Ossos de sépia: 1920-1927.
Tradução prefácio e notas de Renato Xavier. Edição bilíngue. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2011. Em italiano: p. 190; em português: p. 191. (Edição
comemorativa dos 25 anos da Companhia das Letras)
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