Como o de ontem, tem-se aqui mais um poema a tratar do tema da solidão, muito embora com inflexões bem distintas às daquele: o falante, decerto já sem a companhia de sua consorte, põe-se a lucubrar sobre os instantes já quase sem sentido que passa a experimentar, saturados de pensamentos que mais revolvem o passado que sondam o futuro.
Pensar em Deus é um dos recursos que lhe vem à mente, logo cerceado ante a perspectiva de ter que explicá-lo, mais que ver explicada a sua própria vida – objetivo tencionado a princípio. E assim segue vivendo e aspirando a um esquivo sonho de justiça, com o poder de libertá-lo mesmo da tentação da glória.
J.A.R. – H.C.
Edmundo de Bettencourt
(1889-1973)
Solidão
Não sei porque vivo ainda
sob a razão duma vida
bem solitária e que não finda
senão comigo.
Havia,
a um canto daquela sala,
uma teimosa esperança de calor.
Acabo de chegar morto de frio,
passei dias e noites sem a carícia duma fala,
sem o aroma duma flor.
E entro...
mas, a velha criança que sou, já devia saber
que viria encontrar um bom fogão vazio,
no ar, aberta, a vaga sepultura dum rumor,
e no chão, uma rosa pisada a apodrecer.
Agora soam baladas
que me seriam
gratas
se eu não estivesse longe e até de mim distante.
Ou se já não me esperasse,
toda a ternura lânguida
do beijo nu e mais histérico
de certa minha amante.
(É uma onda a quebrar e que eu furo,
o eco do egoísmo – até o das pedras...)
Ando agora a pensar,
em hora continuada,
que, se pensasse mais em Deus,
talvez tivesse, um dia,
a minha vida explicada!
Mas se eu mais pensar em Deus
terei de explicá-lo.
Quem nele há pouco me falou,
tentando estar com ele,
sem querer tentava revelá-lo,
e apenas para mim subia...
...talvez levado pela ave nocturna
dum bem remoto velho sonho de hierarquia.
Parto amanhã de madrugada!
Minha intenção,
viva através do sono, me desperta.
Um sonho de justiça deixa-me só.
Porém, até
da tentação da glória me liberta!
Em: “O Momento e a Legenda” (1917-1930)
Melancolia
(Constance Marie Charpentier: pintora francesa)
Referência:
BETTENCOURT, Edmundo de. Solidão. In:
__________. Poemas: 1930-1962. Lisboa, PT: Portugália, dez. 1963. p. 71-73.
(Coleção ‘Poetas de Hoje’, n. 14)
Nenhum comentário:
Postar um comentário