Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Edmundo de Bettencourt - Solidão

Como o de ontem, tem-se aqui mais um poema a tratar do tema da solidão, muito embora com inflexões bem distintas às daquele: o falante, decerto já sem a companhia de sua consorte, põe-se a lucubrar sobre os instantes já quase sem sentido que passa a experimentar, saturados de pensamentos que mais revolvem o passado que sondam o futuro.

Pensar em Deus é um dos recursos que lhe vem à mente, logo cerceado ante a perspectiva de ter que explicá-lo, mais que ver explicada a sua própria vida – objetivo tencionado a princípio. E assim segue vivendo e aspirando a um esquivo sonho de justiça, com o poder de libertá-lo mesmo da tentação da glória.

J.A.R. – H.C.

 

Edmundo de Bettencourt

(1889-1973)

 

Solidão

 

Não sei porque vivo ainda

sob a razão duma vida

bem solitária e que não finda

senão comigo.

 

Havia,

a um canto daquela sala,

uma teimosa esperança de calor.

Acabo de chegar morto de frio,

passei dias e noites sem a carícia duma fala,

sem o aroma duma flor.

 

E entro...

mas, a velha criança que sou, já devia saber

que viria encontrar um bom fogão vazio,

no ar, aberta, a vaga sepultura dum rumor,

e no chão, uma rosa pisada a apodrecer.

 

Agora soam baladas

que me seriam

gratas

se eu não estivesse longe e até de mim distante.

Ou se já não me esperasse,

toda a ternura lânguida

do beijo nu e mais histérico

de certa minha amante.

 

(É uma onda a quebrar e que eu furo,

o eco do egoísmo – até o das pedras...)

 

Ando agora a pensar,

em hora continuada,

que, se pensasse mais em Deus,

talvez tivesse, um dia,

a minha vida explicada!

Mas se eu mais pensar em Deus

terei de explicá-lo.

 

Quem nele há pouco me falou,

tentando estar com ele,

sem querer tentava revelá-lo,

e apenas para mim subia...

...talvez levado pela ave nocturna

dum bem remoto velho sonho de hierarquia.

 

Parto amanhã de madrugada!

Minha intenção,

viva através do sono, me desperta.

Um sonho de justiça deixa-me só.

Porém, até

da tentação da glória me liberta!

 

Em: “O Momento e a Legenda” (1917-1930)

 

Melancolia

(Constance Marie Charpentier: pintora francesa)


Referência:

BETTENCOURT, Edmundo de. Solidão. In: __________. Poemas: 1930-1962. Lisboa, PT: Portugália, dez. 1963. p. 71-73. (Coleção ‘Poetas de Hoje’, n. 14)

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