O poeta descreve a história de gerações de uma família circense, a começar pela relação de um aristocrata – Oto Frederico Knieps – com uma encantadora equilibrista – Agnes –, crônica essa que deu ensejo à recente película homônima, lançada em fins de 2018, pelo diretor Cacá Diegues, com trilha musical composta por Edu Lobo e Chico Buarque, lá pelos idos dos 80.
O falante, ao longo do poema, reitera o interesse da imprensa acerca dos episódios marcadamente triviais que envolvem a trupe, mas o desinteresse dessa mesma imprensa quanto aos milagres a que estão associados os nomes das gêmeas Marie e Helene – aptos a homologar a conexão dos fatos humanos às premissas etéreas.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Lima
(1893-1953)
O Grande Circo Místico
O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico
Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista
Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo
Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois
ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a
pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do
Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm
esbarrado;
são as suas levitações que a plateia pensa ser
truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas em que os simples dizem que há
o diabo;
mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus
amigos,
seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
Em: “A túnica inconsútil (1938)
Cavalo de Circo
(Marc Chagall: pintor russo-francês)
Referência:
LIMA, Jorge de. O grande circo místico.
In: __________. Poesia completa: em um volume. Organização de Alexei
Bueno. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1997. p. 372-373. (Biblioteca
luso-brasileira; Série brasileira)
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