O falante está a redarguir às vindicações de sua provável companheira – ou a um presumível credor, talvez –, por doar-se e doar-se a uma vigília de filantropia ou de caridade a terceiros, esquecendo-se das “dívidas” contraídas por amor – ou por um ajuste firmado de compra e venda –, tal que, agora, já não dispõe de haveres que a possam quitar.
Emergem das linhas do poema duas inferências
mais facilmente perscrutáveis: a primeira (i), alusiva ao objeto de troca do
empréstimo concedido por Shylock, judeu de origem, ao mercador Antônio, na peça
“O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare (1564-1616) – uma libra da carne
extraída ao corpo do devedor –; e a outra (ii), mais mediata, associável às
palavras de Cristo em Mateus 7: 7-8, no sentido da provisão infinita do
universo, pois dar e receber são faces da mesma moeda, literalmente:
“Pedi, e vos será dado; buscai, e achareis; batei, e a porta se abrirá. Pois todo aquele que pede recebe; quem procura acha; e, para todos os que batem, a porta se abrirá”.
J.A.R. – H.C.
Anne Stevenson
(1933-2020)
After the End of It
You gave and gave,
and now you say you’re poor.
I’m in your debt, you say,
and there’s no way to repay you
but by my giving more.
Your pound of flesh is what you must have?
Here’s what I’ve saved.
This sip of wine is yours,
this sieve of laughter. Yours,
too, these broken haloes
from my cigarette, these coals
that flicker when the salt wind howls
and the letter box blinks like a loud
eyelid over the empty floor.
I’ll send this, too, this gale between rains,
this wild day. Its cold so cold
I want to break it into panes
like new ice on a pond; then pay it
pain by pain to your account.
Let it freeze us both into some numb country!
Giving and taking might be the same there.
A future of measurement and blame
gone in a few bitter minutes.
Bote Salva-Vidas com Equipamento Manby
Saindo ao Resgate de Navio Encalhado
Que Emite Sinais de Socorro (Luzes Azuis)
(J. M. W. Turner: pintor inglês)
Depois de Isso Findar
Doaste e doaste,
e agora dizes que és pobre.
Estou em dívida contigo, confessas-me,
e não há forma de reembolsar-te
senão doando mais.
Tua libra de carne é o que deves ter?
Aqui está a que preservei a salvo.
Este trago de vinho é teu,
este tamis de risos. Teus,
por igual, estes halos partidos
de meu cigarro, estas brasas
que esplendem quando o vento salgado uiva
e a caixa de correio cintila como uma pálpebra
aprumada sobre o chão vazio.
Hei de enviar-te, também, este vendaval entre
chuvas,
este dia selvagem. Faz tanto frio
que quero rompê-lo em cristais
como gelo novo num lago; depois, quitá-lo
dor por dor à tua conta.
Deixemo-nos congelar assim em algum país letargo!
Ali, dar e receber podem equivaler-se.
Um futuro de vindicações e censuras
esvai-se em poucos e amargos minutos.
Referência:
STEVENSON, Anne. After the end of it. In:
ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st. ed.
New York, NY: Miramax Books, 2003. p. 281.
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