Há laivos da poesia de Fernando Pessoa, ou até mesmo de Sá-Carneiro, neste poema de Côrtes-Rodrigues, ademais pejado de certa mística religiosa: um estado de desalento e dispersão perante a vida, uma aspiração a se anular o próprio ser, para então convergir, em identidade, a um “Outro-Ser”, que se presume seja Deus.
A rigor, os versos do poeta dão-nos a impressão de desconforto com o estágio representado pela vida presente, experimentada num estado de nostalgia extática em relação à região não precisamente especificada de onde veio, e de contemplação aspirante a uma paragem redentora e consubstanciadora da unidade no Eterno.
J.A.R. – H.C.
Armando Côrtes-Rodrigues
(1891-1971)
Passo triste no mundo, alheio ao mundo
Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E místico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh’Alma do profundo
Abismo do seu Ser.
Vivo de Mim, em Mim, e para Mim,
E para Deus em Mim ressuscitado,
Sou Saudade do Longe donde vim,
E sou Ânsia do Longe, em que por fim
Serei transfigurado.
Vivo de Deus, em Deus, e para Deus,
E minh’alma, sonâmbula, esquecida,
Nele fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sozinha, olhando os céus,
No caminho da Vida.
Fui Outro, e, Outro sendo, Outro serei;
Outro vivendo a mística beleza,
Por esta humana forma que encarnei,
Por lágrimas de sangue que chorei
Na terra da tristeza.
Espírito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo, sem o ver,
Em esta pobre terra de pecado,
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.
Luz Divina
(Patricia K. Bollinger: pintora norte-americana)
Referência:
CÔRTES-RODRIGUES, Armando. Passo triste
no mundo, alheio ao mundo. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção,
organização, introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da
poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1.
ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 1190.
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