Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 10 de novembro de 2018

Rilke - Quem soube, espelhos, descrever jamais

O terceiro poema da segunda parte de “Sonetos a Orfeu” (1923) propõe-se não a definir o que sejam fisicamente os espelhos, senão a essência deles: são eles plenos de coisas familiares às quais não nos dão acesso; “desperdiçam” espaço, ainda que não haja ninguém para contemplar as imagens neles refletidas.

Afinal, há no espelho um sítio vazio e inesgotável que preenche os interstícios do tempo: quando nele nos olhamos, o tempo para, pois as imagens espelhadas não deixam rastros, movendo-se em eterna quietude. Ademais, espelhos, como os crivos, têm o dom de diferençar: apenas podemos ver nosso corpo, mas não nossa individualidade. No espelho, Narciso vê um estranho, o qual, ainda que possa com ele se parecer, não é mais que uma imagem pela qual vem a se apaixonar.

J.A.R. – H.C.

Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

Spiegel noch nie hat man wissend beschrieben

Spiegel noch nie hat man wissend beschrieben,
was ihr in euerem Wesen seid.
Ihr, wie mit lauter Löchern von Sieben
erfüllten Zwischenräume der Zeit.

Ihr, noch des leeren Saales Verschwender –,
wenn es dämmmert, wie Wälder weit...
Und der Lüster geht wie ein Sechzehn-Ender
durch eure Unbetretbarkeit.

Manchmal seid ihr voll Malerei.
Einige scheinen in euch gegangen –,
andere schicktet ihr scheu vorbei.

Aber die Schönste wird bleiben –, bis
drüben in ihre enthaltenen Wangen
eindrang der klare gelöste Narziss.

In: “Sonette an Orpheus” (1923)

Um bar no Folies Bergère
(Edouard Manet: pintor francês)

Quem soube, espelhos, descrever jamais

Quem soube, espelhos, descrever jamais
por dentro o vosso ser obscuro?
De interstícios do tempo não passais,
vós crivos repletos de furos.

Vós, que esbanjais a sala esvaziada –
vastos bosques, ao fim da tarde...
O lustre cruza, cervo de galhada,
vossa inacessibilidade.

De pinturas às vezes estais cheios.
Umas parecem ter-vos penetrado –
já outras afastastes com receio.

Mas a mais bela fica, até que o liso
de suas faces entre, do outro lado,
a liberta clareza de Narciso.

Em: “Sonetos a Orfeu” (1923)

Referência:

RILKE, Rainer Maria. II.3 – Spiegel noch nie hat man wissend beschrieben / II.3 – Quem soube, espelhos, descrever jamais. Tradução de José Paulo Paes. In: __________. Poemas. Seleção, tradução e introdução de José Paulo Paes. 3. reimpressão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1993. Em alemão: p. 154; em português: p. 155.

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