Pessoa, poeta de muitos heterônimos, de odes abertas, longas,
prodigiosas, de soberbos “insights”, também é o poeta da rima e da métrica, como
se pode deduzir de seus muitos poemas – e não só dos da primeira fase, senão
também daqueles que se enfeixam entre os mais tardios, como o que abaixo
transcrevo.
Em todos eles, seja como for, há aquele pendor ao ensimesmado, ao
absorto – e mesmo nessa vereda circunscrita, o escrito pulula em verdades que
lhe assolam o espírito, reconhecendo-se no pouco que é, ante a imensidão do
silêncio e do espaço à volta, onde se começa a morrer bem antes que todos os feitos tenham sido vividos.
J.A.R. – H.C.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Aqui na orla da praia...
Aqui na orla da
praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me
atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei
meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia,
pois dormirei de seguida.
A vida é como uma
sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na
alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que
chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e
nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla
morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita
pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já
ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer
muito antes de ter vivido.
Deem-me, onde aqui
jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do
acaso, senão a brisa na face;
Deem-me um vago amor
de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem
dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio
cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir
sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na
distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem
fragrância da brisa de qualquer céu.
(10.8.1929)
Em: “Cacioneiro” (1930)
Na praia
(Konstantin Razumov:
pintor russo)
Referência:
PESSOA, Fernando. Aqui na orla da
praia... In: __________. Obra poética.
8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1981. p. 84. (Biblioteca
Luso-Brasileira)
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