Os poetas são mestres em transformar
meros acontecimentos do cotidiano na mais pura poesia: o uruguaio Benedetti é
um deles, como se pode constatar pelo poema a seguir, extraído a uma série que
sintetiza tanto os “lugares comuns” quanto os “estados de exceção” no curso dos
dias, afora as “cotidianas” – como esta –, cinco ao todo, na obra.
Nesse fluir espasmódico que é a vida,
haveremos de ter a suficiente capacidade de filtrar a alegria que, por vezes,
esconde-se em átimos fugazes, em meio a um rol interminável de momentos que
assolam o espírito, lancinando-o, fustigando-o, até que a sua totalidade se
torna tão expressiva que pode levar os fracos à renúncia. Levantemos, portanto,
a bandeira do nosso júbilo, defendendo-a – como o faz Benedetti em um dos
poemas da série (“Defensa de la Alegría”).
J.A.R. – H.C.
Mario Benedetti
(1920-2009)
Cotidiana I
La vida cotidiana es
un instante
de otro instante que
es la vida total del hombre
pero a su vez cuántos
instantes no ha de tener
ese instante del
instante mayor
cada hoja verde se
mueve en el sol
como si perdurar
fuera su inefable destino
cada gorrión avanza a
saltos no previstos
cómo burlándose del
tiempo y del espacio
cada hombre se abraza
a alguna mujer
como si así aferrara
la eternidad
en realidad todas
estas pertinacias
son modestos
exorcismos contra la muerte
batallas perdidas con
ritmo de victoria
reos obstinados que
se niegan
a notificarse de su
injusta condena
vivientes que se
hacen los distraídos
la vida cotidiana es
también una suma de instantes
algo así como
partículas de polvo
que seguirán cayendo
en un abismo
y sin embargo cada
instante
o sea cada partícula
de polvo
es también un copioso
universo
con crepúsculos y
catedrales y campos de cultivo
y multitudes y
cópulas y desembarcos
y borrachos y
mártires y colinas
y vale la pena
cualquier sacrificio
para que ese abrir y
cerrar de ojos
abarque por fin el
instante universo
con una mirada que no
se avergüence
de su reveladora
efímera
insustituible
luz
Em: “Cotidianas” (1979)
Caminhada matutina em Budapeste
(Jonelle Summerfield:
pintora norte-americana)
Cotidiana I
A vida cotidiana é um
instante
de outro instante que
é a vida total do homem
mas por sua vez
quantos instantes não há de ter
esse instante do
instante maior
cada folha verde se
move ao sol
como se perdurar
fosse seu inefável destino
cada pardal avança a
saltos imprevistos
como burlando-se do
tempo e do espaço
cada homem se abraça
a alguma mulher
como se assim
agarrasse a eternidade
na realidade todas
estas pertinácias
são modestos
exorcismos contra a morte
batalhas perdidas com
ritmo de vitória
réus obstinados que
se recusam
a admitir a injusta
punição
viventes que se fazem
de distraídos
a vida cotidiana é
também uma soma de instantes
algo assim como
partículas de pó
que continuarão
caindo em um abismo
e contudo cada
instante
ou seja cada
partícula de pó
é também um copioso
universo
com crepúsculos e
catedrais e campos de cultivo
e multidões e cópulas
e desembarques
e bêbados e mártires
e colinas
e vale a pena
qualquer sacrifício
para que esse abrir e
fechar de olhos
abarque por fim o
instante universo
com um olhar que não
se envergonhe
de sua reveladora
efêmera
insubstituível
luz
Em: “Cotidianas” (1979)
Referência:
BENEDETTI, Mario. Cotidiana I /
Cotidiana I. Tradução de Julio Luís Gehlen. In: __________. Antologia poética. Edição bilíngue.
Seleção, tradução e apresentação de Julio Luís Gehlen. Ilustrações de Luiz
Trimano. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em espanhol: p. 114; em português:
p. 115.
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