Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Mario Benedetti - Cotidiana I

Os poetas são mestres em transformar meros acontecimentos do cotidiano na mais pura poesia: o uruguaio Benedetti é um deles, como se pode constatar pelo poema a seguir, extraído a uma série que sintetiza tanto os “lugares comuns” quanto os “estados de exceção” no curso dos dias, afora as “cotidianas” – como esta –, cinco ao todo, na obra.

Nesse fluir espasmódico que é a vida, haveremos de ter a suficiente capacidade de filtrar a alegria que, por vezes, esconde-se em átimos fugazes, em meio a um rol interminável de momentos que assolam o espírito, lancinando-o, fustigando-o, até que a sua totalidade se torna tão expressiva que pode levar os fracos à renúncia. Levantemos, portanto, a bandeira do nosso júbilo, defendendo-a – como o faz Benedetti em um dos poemas da série (“Defensa de la Alegría”).

J.A.R. – H.C.

Mario Benedetti
(1920-2009)

Cotidiana I

La vida cotidiana es un instante
de otro instante que es la vida total del hombre
pero a su vez cuántos instantes no ha de tener
ese instante del instante mayor

cada hoja verde se mueve en el sol
como si perdurar fuera su inefable destino
cada gorrión avanza a saltos no previstos
cómo burlándose del tiempo y del espacio
cada hombre se abraza a alguna mujer
como si así aferrara la eternidad

en realidad todas estas pertinacias
son modestos exorcismos contra la muerte
batallas perdidas con ritmo de victoria
reos obstinados que se niegan
a notificarse de su injusta condena
vivientes que se hacen los distraídos

la vida cotidiana es también una suma de instantes
algo así como partículas de polvo
que seguirán cayendo en un abismo
y sin embargo cada instante
o sea cada partícula de polvo
es también un copioso universo

con crepúsculos y catedrales y campos de cultivo
y multitudes y cópulas y desembarcos
y borrachos y mártires y colinas

y vale la pena cualquier sacrificio
para que ese abrir y cerrar de ojos
abarque por fin el instante universo
con una mirada que no se avergüence
de su reveladora
efímera
insustituible

luz

Em: “Cotidianas” (1979)

Caminhada matutina em Budapeste
(Jonelle Summerfield: pintora norte-americana)

Cotidiana I

A vida cotidiana é um instante
de outro instante que é a vida total do homem
mas por sua vez quantos instantes não há de ter
esse instante do instante maior

cada folha verde se move ao sol
como se perdurar fosse seu inefável destino
cada pardal avança a saltos imprevistos
como burlando-se do tempo e do espaço
cada homem se abraça a alguma mulher
como se assim agarrasse a eternidade

na realidade todas estas pertinácias
são modestos exorcismos contra a morte
batalhas perdidas com ritmo de vitória
réus obstinados que se recusam
a admitir a injusta punição
viventes que se fazem de distraídos

a vida cotidiana é também uma soma de instantes
algo assim como partículas de pó
que continuarão caindo em um abismo
e contudo cada instante
ou seja cada partícula de pó
é também um copioso universo

com crepúsculos e catedrais e campos de cultivo
e multidões e cópulas e desembarques
e bêbados e mártires e colinas

e vale a pena qualquer sacrifício
para que esse abrir e fechar de olhos
abarque por fim o instante universo
com um olhar que não se envergonhe
de sua reveladora
efêmera
insubstituível
luz

Em: “Cotidianas” (1979)

Referência:

BENEDETTI, Mario. Cotidiana I / Cotidiana I. Tradução de Julio Luís Gehlen. In: __________. Antologia poética. Edição bilíngue. Seleção, tradução e apresentação de Julio Luís Gehlen. Ilustrações de Luiz Trimano. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em espanhol: p. 114; em português: p. 115.

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