Em reminiscências que nos fazem evocar as desventuras de poetas que
jovens morreram, como os pertencentes ao denominado “Mal do Século”, Júdice
lança mão das “escuras lágrimas” vindas do além-túmulo, caídas em terra, a propiciar-lhe
o alimento capaz de conferir consistência aos seus lábios e língua.
Tais lágrimas são o consectário de experiências póstumas daqueles poetas,
ainda não totalmente assimiladas, ou melhor, que ainda se espelham em seus
padrões de existência prévia, com suas imagens a assoberbar-lhes a mente, redundando
em imprecações e choro.
J.A.R. – H.C.
Nuno Júdice
(n. 1949)
Poema
Os poetas a quem a
morte surpreende,
quando jovens,
juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus
uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido
mais atento distinguirá,
de entre os mil
ruídos da temível noite,
o seu coro de
imprecação e choro.
De dia, adormecidos
sob a terra, dissolvem-se
na humildade e nas
raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das
pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto,
se alguma imagem da passada
vida os atormenta e
obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura
lágrima cai em terra,
e o lodo assim
formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a
minha língua adquirem
a sua consistência, e
o meu rosto lamacento
volta-se para baixo,
de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento
nos órgãos vazios.
(Em: “O mecanismo romântico da
fragmentação”)
Dois Poetas se Encontram
no Jardim à Noite
(Donald Langosy: artista
norte-americano)
Referência:
JÚDICE, Nuno. Poema. In: COSTA E SILVA,
Alberto; BUENO, Alexei (Seleção e Introdução). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 404.
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