Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Nuno Júdice - Poema

Em reminiscências que nos fazem evocar as desventuras de poetas que jovens morreram, como os pertencentes ao denominado “Mal do Século”, Júdice lança mão das “escuras lágrimas” vindas do além-túmulo, caídas em terra, a propiciar-lhe o alimento capaz de conferir consistência aos seus lábios e língua.

Tais lágrimas são o consectário de experiências póstumas daqueles poetas, ainda não totalmente assimiladas, ou melhor, que ainda se espelham em seus padrões de existência prévia, com suas imagens a assoberbar-lhes a mente, redundando em imprecações e choro.

J.A.R. – H.C.

Nuno Júdice
(n. 1949)

Poema

Os poetas a quem a morte surpreende,
quando jovens, juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido mais atento distinguirá,
de entre os mil ruídos da temível noite,
o seu coro de imprecação e choro.
De dia, adormecidos sob a terra, dissolvem-se
na humildade e nas raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto, se alguma imagem da passada
vida os atormenta e obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura lágrima cai em terra,
e o lodo assim formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a minha língua adquirem
a sua consistência, e o meu rosto lamacento
volta-se para baixo, de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento nos órgãos vazios.

(Em: “O mecanismo romântico da fragmentação”)

Dois Poetas se Encontram
no Jardim à Noite
(Donald Langosy: artista norte-americano)

Referência:

JÚDICE, Nuno. Poema. In: COSTA E SILVA, Alberto; BUENO, Alexei (Seleção e Introdução). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 404.

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