Este longo poema do poeta inglês W. H. Auden – 28 estrofes ao todo –,
dedicado à memória de Sigmund Freud, invoca certos referentes caros à
Psicanálise, em especial a lição de que há graves consequências para o nosso
psiquismo a cada vez que negamos os nossos desejos ocultos.
Nas entrelinhas, tecem-se as correlações entre a Poesia e a Psicanálise e
a forma como as teorias de Freud impactaram as ideias de Auden, em especial a
concepção inarredável de que a nossa vida interna afeta a imagem externa que expomos
à sociedade, do que decorre muito de inexplicável, haja vista os elementos nela
presentes que não se entendem ou mesmo se desconhecem.
J.A.R. – H.C.
W. H. Auden
(1907-1973)
In memory of
Sigmund Freud
(AUDEN, 1986, p. 94, 96, 98 e 100)
(d. sept. 1939)
When there are so many we shall have to mourn,
when grief has been made so public, and exposed
to the critique of a whole epoch
the frailty of our conscience and anguish,
of whom shall we speak? For every day they die
among us, those who were doing us some good,
who knew it was never enough but
hoped to improve a little by living.
Such was this doctor: still at eighty he wished
to think of our life from whose unruliness
so many plausible young futures
with threats or flattery ask obedience,
but his wish was denied him: he closed his eyes
upon that last picture, common to us all,
of problems like relatives gathered
puzzled and jealous about our dying.
For about him till the very end were still
those he had studied, the fauna of the night,
and shades that still waited to enter
the bright circle of his recognition
turned elsewhere with their disappointment as he
was taken away from his life interest
to go back to the earth in London,
an important Jew who died in exile.
Only Hate was happy, hoping to augment
his practice now, and his dingy clientele
who think they can be cured by killing
and covering the garden with ashes.
They are still alive, but in a world he changed
simply by looking back with no false regrets;
all he did was to remember
like the old and be honest like children.
He wasn’t clever at all: he merely told
the unhappy Present to recite the Past
like a poetry lesson till sooner
or later it faltered at the line where
long ago the accusations had begun,
and suddenly knew by whom it had been judged,
how rich life had been and how silly,
and was life-forgiven and more humble,
able to approach the Future as a friend
without a wardrobe of excuses, without
a set mask of rectitude or an
embarrassing over-familiar gesture.
No wonder the ancient cultures of conceit
in his technique of unsettlement foresaw
the fall of princes, the collapse of
their lucrative patterns of frustration:
if he succeeded, why, the Generalised Life
would become impossible, the monolith
of State be broken and prevented
the co-operation of avengers.
Of course they called on God, but he went his way
down among the lost people like Dante, down
to the stinking fosse where the injured
lead the ugly life of the rejected,
and showed us what evil is, not, as we thought,
deeds that must be punished, but our lack of faith,
our dishonest mood of denial,
the concupiscence of the oppressor.
If some traces of the autocratic pose,
the paternal strictness he distrusted, still
clung to his utterance and features,
it was a protective coloration
for one who’d lived among enemies so long:
if often he was wrong and, at times, absurd,
to us he is no more a person
now but a whole climate of opinion
under whom we conduct our different lives:
Like weather he can only hinder or help,
the proud can still be proud but find it
a little harder, the tyrant tries to
make do with him but doesn’t care for him much:
he quietly surrounds all our habits of growth
and extends, till the tired in even
the remotest miserable duchy
have felt the change in their bones and are cheered
till the child, unlucky in his little State,
some hearth where freedom is excluded,
a hive whose honey is fear and worry,
feels calmer now and somehow assured of escape,
while, as they lie in the grass of our neglect,
so many long-forgotten objects
revealed by his undiscouraged shining
are returned to us and made precious again;
games we had thought we must drop as we grew up,
little noises we dared not laugh at,
faces we made when no one was looking.
But he wishes us more than this. To be free
is often to be lonely. He would unite
the unequal moieties fractured
by our own well-meaning sense of justice,
would restore to the larger the wit and will
the smaller possesses but can only use
for arid disputes, would give back to
the son the mother’s richness of feeling:
but he would have us remember most of all
to be enthusiastic over the night,
not only for the sense of wonder
it alone has to offer, but also
because it needs our love. With large sad eyes
its delectable creatures look up and beg
us dumbly to ask them to follow:
they are exiles who long for the future
that lives in our power, they too would rejoice
if allowed to serve enlightenment like him,
even to bear our cry of ‘Judas’,
as he did and all must bear who serve it.
One rational voice is dumb. Over his grave
the household of Impulse mourns one dearly loved:
sad is Eros, builder of cities,
and weeping anarchic
Aphrodite.
Sigmund Freud
(1856-1939)
Em memória de Sigmund Freud
(AUDEN, 1986, p. 95,
97, 99 e 101)
(m. em set. de 1939)
Quando há tantas
pessoas a quem devemos lamentar,
quando se tornou
assim tão pública a aflição e expôs
à critica de toda uma
época
nossa frágil
consciência, nossa angústia,
de quem iremos falar?
Se todos os dias morrem
entre nós os que nos
faziam algum bem, embora
nunca o bastante,
sabiam, mas
contavam, vivendo, aumentá-lo um pouco.
Assim era este
médico: aos oitenta desejava
refletir sobre a
nossa vida, cuja indisciplina
tanto porvir
plausível, jovem,
quer domar com
ameaças ou lisonjas,
mas seu desejo foi
negado: ele fechou os olhos
sobre o último quadro,
a todos nós comum, de problemas
como parentes
congregados
perplexos e ciumentos
de morrermos.
À volta dele, até o
último alento, se postaram
aqueles − fauna da
noite − a quem havia estudado,
e sombras inda à
espera de entrar
no claro âmbito do
seu entendimento,
foram-se alhures com
seu desaponto quando ele,
afastado do interesse
de toda sua vida
voltou de novo à
terra, em Londres,
importante judeu
morto no exílio.
Só o Ódio é que ficou
feliz, na esperança de aumentar
sua clinica então e
sua sórdida clientela
que pensa curar-se
com matar
e cobrir depois de
cinzas os jardins.
Eles estão vivos
ainda, mas num mundo que ele
mudou com olhar para
trás sem falsos pesares;
tudo quanto fez foi,
como os velhos,
lembrar e, como as
crianças, ser honesto.
Nunca jamais foi
esperto: limitava-se a dizer
ao Presente infeliz
que recitasse o Passado qual
uma lição de poesia
até
mais cedo ou mais
tarde hesitar no verso onde,
havia muito, as
acusações tinham começado,
e repentinamente
descobrir quem o julgara,
como a vida fora rica
e tola,
e, com a vida
perdoada e mais humilde,
poder aproximar-se do
Futuro como amigo
sem um guarda-roupa
inteiro de desculpas, sem uma
máscara de retidão ou
gesto
de embaraçosa e
excessiva intimidade.
Não admira que as
antigas culturas presunçosas
na técnica de
deslocamento dele antevissem
quedas de reis,
colapsos dos
seus lucrativos
padrões de frustração:
se ele tivesse êxito,
a Vida Generalizada
tornar-se-ia
impossível, o monolito do Estado
seria quebrado e
impedida
a colaboração dos
vingadores.
Claro que invocavam a
Deus, mas ele prosseguia em seu
caminho para baixo,
até a perdida gente, como Dante,
até a vasa onde os ofensos
levam a vida vil dos
rejeitados,
e nos mostrava o que
eram o mal, não, como pensávamos,
atos a serem punidos,
mas nossa falta de fé,
nosso modo desonesto
de
negar a
concupiscência do opressor.
Se traços da atitude
autocrática, do paternal
rigor por que tinha
suspicácia, ainda se apegavam
às suas palavras e
feições,
eram só um colorido
protetor
de quem viveu tempo
demais entre gente inimiga:
se estava amiúde
errado e eram algumas vezes absurdo,
já não é mais uma
pessoa
para nós, mas um
clima de opinião
dentro do qual
vivemos nossas diferentes vidas:
como o tempo ele só
pode ajudar ou atrapalhar;
o soberbo continua a
sê-lo,
acha porém mais
difícil, o tirano,
tenta enganá-lo, mas
não se importa muito com ele:
sem alarde ele afeta
o nosso desenvolvimento
até os exaustos,
mesmo no
ducado mais remoto e
miserável,
sentirem em seus
ossos a mudança e animarem-se,
até a criança
inditosa, no seu pequeno Estado,
algum lar sem
liberdade,
colmeia cujo mel é
medo e angústia,
sentir-se mais calma
agora e certa de uma saída
qualquer, enquanto,
na grama da nossa negligência,
tantos objetos
esquecidos
pelo seu brilho não
encorajado,
nos são devolvidos e
de novo tornam-se preciosos;
brinquedos que
achávamos ter de deixar quando grandes,
barulhinhos de que não
ousávamos
rir, caretas que
fazíamos a furto.
Mas ele não deseja
mais do que isso. Ser livre
é com frequência
estar sozinho. Ele cuidava de unir
metades desiguais
rompidas
por nossa boa
intenção de sermos justos;
de devolver aos
maiores a agudeza e vontade
que os menores
possuem e costumam somente usar
em tolas disputas,
dar de volta
ao filho a opulência
do sentir materno:
ele cuidava acima de
tudo era de lembrar-nos
que nos deixássemos
arrebatar pela noite, não
apenas pelo senso de
pasmo
que por si só nos dá,
mas também
por que precisa o
nosso amor. Os grandes olhos tristes
de suas doces
criaturas rogam mudamente
que as convidemos a
seguir-nos;
são banidos que
aspiram ao futuro
que está em nossas
mãos, eles também se alegrariam
se lhes permitissem
servir, como ele, à iluminação,
e suportar nosso
grito: “Judas!”
como ele suportou e
os que o servirem.
Uma voz racional
calou-se. Sobre a sua tumba,
a família do Impulso
pranteia um ente querido.
Eros está triste, o
construtor
de cidades; chora a
anárquica Afrodite.
(Tradução de José Paulo Paes)
Referência:
AUDEN, W. H. Poemas. Seleção de João Moura Jr. Edição bilíngue. Tradução e
Introdução de José Paulo Paes e João Moura Jr. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 1986.
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