Košice - Eslováquia
“Os gêmeos, mesmo de
longe, mesmo se adultos, conhecem tudo um do outro, e uma estranha lei
biológica os obriga a adoecerem ao mesmo tempo e a sofrerem das mesmas doenças,
mesmo se um vive em Londres e outro sabe-se lá onde, em algum país estrangeiro.
Não se escrevem, não se falam, moram, vivem, se alimentam em condições
diferentes, estão separados por milhares e milhares de quilômetros. E no
entanto, na idade de trinta ou quarenta anos começam a sofrer, no mesmo momento
e com as mesmas probabilidades de cura ou de triste desenlace, de uma doença
idêntica, por exemplo uma icterícia ou uma apendicite. Os dois corpos fazem
parte de uma unidade orgânica, como no passado no útero materno... E amam e
odeiam a mesma pessoa. E às vezes me perguntei se a amizade não constitui um
vínculo parecido com esse vínculo fatal que une os gêmeos. Uma identidade
singular nos pendores, simpatias, gostos, cultura e paixões, liga dois homens –
mesmo se um deles tenta se opor ao outro – em torno de um mesmo destino. É
inútil que um dos dois fuja para longe, ainda assim continuarão a saber o
essencial um do outro. Inútil que um dos dois escolha um novo amigo ou uma nova
amante: sem o tácito acordo do outro não poderá se livrar desse vínculo. O
destino desses homens se cumpre em paralelo, mesmo se um deles vai embora, se
afasta muito do outro e acaba, por exemplo, nos trópicos” (MÁRAI, 1999, p.
91-92).
“A gente vai
envelhecendo aos poucos: numa primeira fase, atenua-se a vontade de viver e de
ver nossos semelhantes. Vai prevalecendo o sentido da realidade, vai se
esclarecendo o significado das coisas, você acha que os acontecimentos se
repetem monótona e fastidiosamente. Isso também é um sinal de velhice.
Finalmente, você percebe que um corpo é apenas um corpo e que os homens, pouco
importa o que façam, são apenas criaturas mortais. Depois, seu corpo envelhece;
não todo de uma vez, é verdade, primeiro envelhecem os olhos ou as pernas, o
estômago, o coração. A gente envelhece assim, pedaço por pedaço. E então, de
repente, sua alma envelhece: mesmo sendo o corpo efêmero e mortal, a alma ainda
é movida por desejos e recordações, ainda procura a alegria. E quando também
desaparece esse desejo de alegria, só restam as recordações e a inutilidade de
todas as coisas; nesse estágio, estamos irremediavelmente velhos. Um dia você
acorda e esfrega os olhos e não sabe mais por que acordou. Já sabe exatamente o
que o dia apresentará a seus olhos: a primavera ou o inverno, os cenários
habituais, as condições atmosféricas, a ordem dos fatos. Nada de surpreendente
pode acontecer: não o surpreendem nem sequer os fatos inesperados, insólitos ou
horripilantes, porque você conhece todas as probabilidades, já previu tudo e
não espera mais nada, nem para o bem nem para o mal... e esta é a verdadeira
velhice. E no entanto, alguma coisa ainda vive em seu coração, uma lembrança,
uma vaga e nebulosa esperança, há alguém que gostaria de ver, há algo que ainda
gostaria de dizer ou saber. Um dia, você tem absoluta certeza, chegará esse
momento, e então, de repente, saber e enfrentar a verdade já não lhe parecerá
tremendamente importante como imaginara durante os anos de espera. O homem
compreende o mundo um pouco de cada vez, e depois morre. Descobre as causas ocultas
dos fenômenos e das ações humanas. A linguagem simbólica do inconsciente...
pois os homens recorrem a uma linguagem simbólica para comunicar seus
pensamentos, você nunca percebeu? Quando falam das coisas essenciais parece que
usam uma língua estrangeira, que falam como os chineses, e é preciso traduzir
essa língua para trazê-la ao plano da realidade. Os homens não sabem nada sobre
si mesmos. Falam sempre de seus desejos e camuflam obstinadamente seus
pensamentos mais secretos. Se você aprender a reconhecer as mentiras dos
homens, notará que dizem sempre coisas diferentes do que pensam e querem
realmente. E então a vida se torna quase divertida. Depois, um dia você
consegue entender a verdade: isso quer dizer que a velhice e a morte chegaram.
Mas nessas alturas já não sente dor” (MÁRAI, 1999, p. 150-151).
Sándor Márai
(1900-1989)
Apreciação de Samuel
Thomas para
“As Velas Ardem Até
Ao Fim” (Título em Portugal)
“As Brasas” (Título no Brasil)
As Velas Ardem Até Ao Fim é uma joia redescoberta da literatura da
Europa central – originalmente publicado em Budapeste em 1942, mas desconhecido
de um público mais vasto até a sua tradução para outras línguas no fim dos anos
90. Contra todas as probabilidades, o romance acabou por tornar-se um best-seller mundial, embora o autor, que
se suicidou durante o exílio nos EUA, em 1989, nunca tenha chegado a
testemunhar a sua inesperada popularidade.
O livro desenrola-se na Hungria, pouco
depois do início da Segunda Guerra Mundial, num remoto castelo no sopé dos
montes Cárpatos. Lá, Henrik, um general na reserva de 75 anos, janta com o seu
velho amigo, Konrad, que não via há cerca de quarenta anos. Há muitas questões
por resolver entre os dois homens, e o que se segue é uma altivez
maravilhosamente controlada – uma esclarecedora série de anedotas,
reminiscências, silêncios, réplicas, refutações e obscurecimentos. Márai
cadencia a obra com talento e precisão, só permitindo que uma nova revelação
aflore quando sentimos que uma espécie de reconciliação pode ser possível. Anos
de azedo ressentimento são condensados numa única noite.
As Velas Ardem Até Ao Fim, uma obra curta e
notável, é um romance ainda impregnado no saber e na atmosfera do império
Austro-Húngaro. Trata-se de um livro com sombras compridas e excelentes vinhos,
com candelabros, florestas antigas e estalidos de mogno. O autor mantém tal
atmosfera sem nunca recorrer a truques baratos. Com todo o seu charme
antiquado, o livro continua um estudo cuidadosamente observado – sobre classes
sociais, amizade, traição e orgulho masculino.
Avaliação da obra pelo bloguinho
(0-10): 9,0.
J.A.R. – H.C.
Referências:
THOMAS, Samuel. As velas ardem até ao
fim. In: BOXALL, Peter (ed.). 1001
livros para ler antes de morrer. Tradução de Manuela Brazão et al. Editor
da edição portuguesa Karl Heinz Petzler. Lisboa, PT: Lisma, 2007. p. 422.
MÁRAI, Sándor. As brasas. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 1999.
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