Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Ferreira Gullar - Muitas Vozes

Um poema de muitas vozes, que mais lembram um tumulto ou um alarido, conforme reconhece o próprio poeta. E quando Gullar bem pronuncia quaisquer precisas palavras, apura no cérebro do leitor todas as sugestões possíveis, como que a vasculhar o amplo espectro do que se conserva no inconsciente próprio ou coletivo.

Muitas vozes que emanam dos fósseis que carregamos em nossas memórias, esperando por serem externalizados por meio da fala – ou de outro modo, sob a forma de versos, a incitar, mais genericamente, nossos múltiplos sentidos.

J.A.R. – H.C.

Ferreira Gullar
(n. 1930)

Muitas Vozes

Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.

(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:

se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)

A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)

a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã

tudo isso em ti
se deposita
e cala
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

De: “Muitas Vozes” (1999)

Partita para Muitas Vozes
(Barbara C. Thomas: pintora norte-americana)

Referência:

GULLAR, Ferreira. Muitas vozes. In: PINTO, Manuel da Costa (Org.). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha, 2006. p. 211-212.

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