Um poema de muitas vozes, que mais lembram um tumulto ou um alarido,
conforme reconhece o próprio poeta. E quando Gullar bem pronuncia quaisquer
precisas palavras, apura no cérebro do leitor todas as sugestões possíveis,
como que a vasculhar o amplo espectro do que se conserva no inconsciente
próprio ou coletivo.
Muitas vozes que emanam dos fósseis que carregamos em nossas memórias, esperando
por serem externalizados por meio da fala – ou de outro modo, sob a forma de
versos, a incitar, mais genericamente, nossos múltiplos sentidos.
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(n. 1930)
Muitas Vozes
Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa
voz:
se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã
tudo isso em ti
se deposita
e cala
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um
alarido:
basta apurar o
ouvido.
De: “Muitas Vozes” (1999)
Partita para Muitas Vozes
(Barbara C. Thomas:
pintora norte-americana)
Referência:
GULLAR, Ferreira. Muitas vozes. In: PINTO,
Manuel da Costa (Org.). Antologia
comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha,
2006. p. 211-212.
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