O poeta acha absurdo ainda falarmos de amor, quando deixamos de nos
compadecer com o medo, a fome e o sofrimento alheios. Para ele, qualquer coisa
não factível seria mais assimilável, digamos assim, pela sociedade, do que a
resolução de problemas ao alcance de todos.
O poema retrata a situação de milhares de crianças que foram parar na
rua, ao relento, como rebentos não planejados de uma sociedade desigual,
sitiada em seu afã de acumular e usufruir bens materiais, sem quaisquer apelos
a pautas de compartilhamento.
J.A.R. – H.C.
Moacyr Félix
(1925-2006)
Quia Absurdum Est
A Roland Corbisier
O gato comeu a
gaiola.
Isto não pode ser
verdade, eu sei,
assim como não se
fotografa uma dor maluca
por ser outra coisa e
não ser dor.
E isto todo o mundo
entende, ou pensa que entende.
O importante é que o
gato comeu a gaiola e o absurdo
que se concretiza
ainda maior quando compramos
uma garrafa de uísque
a poucos metros da noite
em que as crianças
deixam de ser crianças e são comidas
lentamente pelo
sofrimento e pelo medo e pela fome.
O gato comer a gaiola
não me causa espanto.
O que me espanta é
falarmos ainda de amor.
Seis gatos brincando
com uma gaiola de pássaro
(Cornelis Raaphorst:
pintor holandês)
Referência:
FÉLIX, Moacyr. Quia absurdum est. In:
__________. Um poeta na cidade e no
tempo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1966. p. 47. (Coleção
‘Poesia Hoje’; Direção de Moacyr Félix; Série ‘Poetas Brasileiros’; v. 6)
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