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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Marcos Siscar - A Eugenio Montale

Ontem, um poema de Eugenio Montale. Hoje, um poema dedicado pelo poeta brasileiro Marcos Siscar a Eugenio Montale.

Observe-se que o poema de Siscar busca reproduzir a expressão e a aparência dos poemas de Montale: não muito longo, às vezes suprimindo a pontuação, deixando ao leitor a tarefa de interpretá-lo com os sinais postados onde a sua respiração, com adequação, pausar.

Formigas – metafóricas ou elas próprias? – desenvolvem a sua filosofia – “tácita filosofia” –, num instante sobre a terra – meio-dia! – que, a conjecturar pelas imagens do poeta, paira virgem de toda empresa humana.

J.A.R. – H.C.

Marcos Siscar
(Borborema, SP: 1964)

Apreciação de Manuel da Costa Pinto (2006, p. 346-348)

A complexa limpidez dos versos de “A Eugenio Montale” indica a direção que a poética de Marcos Siscar foi tomando livro a livro. O poema desse professor de filosofia e tradutor pertence a sua primeira antologia, que ficaria inédita até a publicação de Metade da Arte (reunindo toda sua produção até 2003). E é nele que aparece o título da obra de estreia: A Terra Inculta – no qual o adjetivo deve ser lido no sentido de “não cultivado”, de terra virgem, chão das “coisas intactas”.
Homenagem ao escritor italiano que foi um dos representantes do “hermetismo” (a poesia “absoluta” dos anos 1930-1940, distante tanto de modelos retóricos quanto da experiência corriqueira), o poema parte de uma realidade elementar: a contemplação das coisas em seu estado bruto, na hora em que “o sol apaga todas as arestas”. Aquilo que parece ser expressão da pureza inteligível e intemporal dos elementos, porém, revela sua opacidade: ao meio-dia, a sombra não se dissolveu sob a pedra das estátuas, mas “encontra-se inteira com seu corpo”; revela-se assim que “sobre a sintaxe da terra inculta” desenha-se a “tácita filosofia”, apenas intuída, dos seres que transitam sobre o solo calcinado. Esse contraste entre claridade e escuridão, entre o áspero e o essencial (como diria Montale), vai se desdobrar, a partir daí, numa dicção cada vez mais árdua e ao mesmo tempo abstrata, numa sintaxe que transforma situações e falas corriqueiras em enigmas da expressão.
     A frase “não se diz” – que dá a título a um de seus livros e reaparece em vários versos (como no poema “Dor” aqui publicado) – assinala essa hesitação em dizer aquilo que, no entanto, deve ser dito. Não se trata da afirmação de que a poesia tem um poder oracular de revelar o ser das coisas – afinal, escreve ele, “os poemas são caixas onde colocamos um nome caixas são coisas de guardar mentiras” (e note-se que o poema “Caixa” mimetiza estruturalmente seu conteúdo, compondo um bloco denso de letras, como se fosse a face de um cubo contendo esse “tratado sobre a mentira”). Ao contrário: como está expresso num tom jocoso em “Psicanálise Caseira”, a “alegria das palavras” advém da miséria de termos de uma linguagem sempre aquém ou além das coisas que se pretende representar. Ou seja, a poesia – essa “sobra” de significado – não cancela a busca da essência do mundo, mas sabe que só pode “guardar a coisa pelo avesso”, só pode ter a “posse da coisa ida”, só pode manipular as palavras que são – como as fotografias – a presença de uma ausência. Daí o fato de que, ao contrário do que dizia o escritor francês (e precursor dos herméticos) Stéphane Mallarmé (1842-1998), “o mundo não existe para acabar num livro”; o que não significa abdicar da ambição humana, de sucumbir ao “último homem” (*), e sim fazer da poesia um espaço para a “alegria nova dos começos”, para encontros com esse real que sempre nos escapa.

(*) Expressão que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (i844-1900) empregava para designar os fracos e ressentidos, temerosos do acaso e da instabilidade proporcionada pelos sentidos, refugiados asceticamente nos valores estabelecidos – em contraposição ao “Super-homem”, aberto para a identidade provisória das coisas e para o devir trágico de uma história sem princípios e fins pré-estabelecidos.

Principais Obras: Não se Diz (1999), Tome seu Café e Saia (2001) – incluídos, junto com o inédito A Terra Inculta, em Metade da Arte (7 Letras/Cosac Naify, 2003).

Sol do Meio Dia II
(Cecile Broz: pintora canadense)

A Eugenio Montale

     meio-dia o sol apaga as arestas
a brisa perpetrou o mormaço
estalo de folha seca palha de milho pássaro
o tempo dorme com suas estátuas
a sombra encontra-se inteira com seu corpo
todas as coisas intactas
na hora morta do dia as formigas
sobre a sintaxe da terra inculta elaboram
sua tácita filosofia

(De: “A Terra Inculta”)

Referência:

SISCAR, Marcos. A Eugenio Montale. In: PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006. p. 344.

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