Eis aqui um poema muitas vezes recitado e analisado nas aulas de Língua
Portuguesa e Comunicação, em especial nesta Terra Brasilis.
Mas o que o torna bem diferenciado é o rompimento que ele representa no
conjunto da obra de Manuel Bandeira, em relação aos cânones literários
parnaso-simbolistas com que compactuou em seus primeiros livros de poesia, como
“Cinzas das Horas” (1917) e “Carnaval” (1919).
No poema, Bandeira propugna pela liberdade mais “libertina” no trato
poético, um modo de interagir com o poema mais livremente, com versos sem métrica
ou rima, nos quais o interesse maior fica na captura da essência mesma da
poesia, em meio aos fatos ordinários da via quotidiana.
J.A.R. – H.C.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Manuel Bandeira foi,
sem dúvida, um dos maiores renovadores da poesia brasileira, por seu conhecimento
profundo da linguagem poética dos segredos da poesia, bem como pela preocupação
técnica e artesanal, e consequente mestria na matéria. Por tudo isso exerceu
enorme influência nos seus contemporâneos e em gerações posteriores.
Naturalmente, o melhor da sua arte não está na técnica, mas na cosmovisão a que
ela serve de veículo. É o poeta da ternura humilde e ao mesmo tempo ardente, do
amor à vida, das pequenas coisas de todo o dia; sabe humanizar os objetos mais
prosaicos. Sendo, no fundo, um romântico, soube evitar os escolhos da
sentimentalidade e do pieguismo perseguindo uma arte depurada e exigente, e de
uma constante pesquisa do seu “métier”. Daí o timbre inconfundível de sua obra:
ao mesmo tempo intimista e social, erudita e popular, requintada e simples, pitoresca
e séria, leve e trágica. Soube atingir a verdadeira simplicidade, – a
simplicidade dos que domam o complexo com passes de magia feita de talento e
labor pertinaz (LUFT, 1979, p. 39).
Decididamente
modernista é Libertinagem, contendo
poemas com que o autor participara no front
do Modernismo, em revistas da vanguarda (de 22 a 30). É notória sobretudo a
renovação da linguagem, neste livro. Bandeira, numa fuga à expressão “poética”,
ao “belo” tradicional, explora os veios da fala cotidiana, coloquial e popular
usando um “prosismo poético”. Tira poema de notícias de jornal, de frases de
todo dia. Com esse material traduz as dores do mundo, a vida e a morte, não na dolência
ou balanceio da poesia habitual, mas numa secura e por vezes num “humour que ostenta a rara qualidade de
ser ao mesmo tempo trágico” (Péricles E. da Silva Ramos, em A Literatura no Brasil, vol. III, t. 1,
p. 544) (LUFT, 1979, p. 38).
De: “A Poesia da Antiga Fábrica”
(Lennart Goebel:
pintor alemão)
Poética
Estou farto do
lirismo comedido
Do lirismo bem
comportado
Do lirismo
funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e
manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do
lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de
um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras
sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções
sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos
sobretudo os inumeráveis
Estou farto do
lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que
capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é
lirismo
Será contabilidade
tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo
dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e
pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns
de Shakespeare
– Não quero mais
saber do lirismo que não é libertação.
Em: “Libertinagem”
Referências:
BANDEIRA, Manuel. Poética. In: LOANDA,
Fernando Ferreira de. Antologia da
moderna poesia brasileira. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967. p. 28-29.
LUFT, Celso Pedro. Manuel Bandeira. In:
__________. Literatura portuguesa e brasileira. Enciclopédia Globo para os
Cursos Fundamental e Médio. Organização de Álvaro Magalhães. V. II. Porto
Alegre, RS: Globo, 1979. p. 37-39.
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