Eis um poema que talvez reflita, por vias não exatamente diretas, a
realidade social de Portugal em boa parte do século passado: a saída de muitos
de seus patrícios, da terra natal para outros países mais bem aquinhoados no
cenário econômico-político europeu, como, por exemplo, a França e a Suíça.
No caso deste poema, Manuel Alegre menciona a chegada à Gare de
Austerlitz, em Paris, de levas de portugueses em busca de melhores condições de
vida ou mesmo fugidos da opressão política salazarista. Pelo texto abaixo,
extraído da seleta em referência, este último caso parece ser bem a situação
vivenciada pelo próprio Manuel Alegre.
Certamente, temos aí um poema datado, como, v.g., muitas das composições
de Chico Buarque de Holanda, à época da ditadura dos anos 60-80, por estas
plagas.
J.A.R. – H.C.
Manuel Alegre de Melo
Duarte nasceu em Águeda em 1936, frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra e
logo aí se notabilizou como figura preponderante do movimento estudantil durante
a crise académica de 1962. Opondo-se frontalmente à guerra colonial, conheceu o
exílio na Argélia e em França. É desse período que datam os seus primeiros
livros de poesia: Praça da Canção (1965), O Canto e as Armas (1967), Um Barco
para Ítaca (1971). Regressado a Portugal em 1974, é dirigente do Partido
Socialista, tem sido deputado à Assembleia da República em várias legislaturas
e foi Secretário de Estado no I Governo Constitucional, primeiro como
responsável pelo departamento da Comunicação Social e, depois, como adjunto do
Primeiro-Ministro para os Assuntos Políticos. Nesta fase se situa a publicação
de Letras (1974) e Coisa Amar/Coisas do Mar (1977). Não obstante a diversidade
de Inspiração que caracteriza os cinco volumes até agora publicados por Manuel Alegre,
é porventura possível apontar a persistência em todos eles da temática amorosa,
da problemática social, da obsessão da história, da presença do mito. Avolumando-se
progressivamente, ao longo desses textos, a sombra tutelar do exemplo camoniano,
com as referidas constantes se relaciona, de modo particularmente reiterado, o
motivo da emigração – emigração no espaço, migração no tempo –, que em si
envolve ou arrasta a nostalgia da Pátria do presente como ausência vivida. Mas
igualmente importante é o facto de tudo isto se mostrar servido por uma grande
mestria dos meios de expressão, por uma extrema diversidade de formas de “discurso”,
por uma continuada segurança prosódica, por uma afinadíssima sensibilidade aos
valores da palavra e aos valores do ritmo. [D. M.-F.] (MOURÃO-FERREIRA; SEIXO,
1981, p. 41).
Manuel Alegre
(n. 1936)
Portugal em Paris
Solitário
por entre a gente eu
vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul
e proletário.
Anónimo passava. E
era Portugal
que passava por entre
a gente e solitário
nas ruas de Paris.
Vi minha pátria
derramada
na Gare de
Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão.
Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pátria sem nada
sem nada
despejada nas ruas de
Paris.
E o trigo?
E o mar?
Foi a terra que não
te quis
ou alguém que roubou
as flores de abril?
Solitário por entre a
gente caminhei contigo
os olhos longe como o
trigo e o mar.
Éramos cem duzentos
mil?
E caminhávamos.
Braços e mãos para alugar
meu Portugal nas ruas
de Paris.
Referência:
ALEGRE. Manuel. Portugal em Paris. In:
MOURÃO-FERREIRA, David; SEIXO, Maria Alzira (Orgs.). Portugal: a terra e o homem. II Volume - 3ª Série. Lisboa, PT:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. p. 48-49.
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