Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 17 de maio de 2015

João Cabral de Melo Neto - Antiode

Com “Antiode” – algo como o contrário de uma ode, não para enaltecer, mas para detratar o lirismo descomedido, centrado em estados de alma tão aclamados pela escola romântica –, João Cabral de Melo Neto vai de encontro à forma de poesia que se diz “profunda”, preconizando talhes mais objetivos no trato da palavra escrita.

Como que para contrastar com o vocabulário mais pudico e estrelado da geração que hostiliza, o poeta lança mão de verbetes algo grotescos, para descontruir a ideia de que a poesia assemelha-se a uma flor, até esvaziá-la de toda as suas dimensões conotativas, fazendo-a atingir o veio dos dejetos, substância elementar de onde toda o material orgânico se origina.

E tornando-se cuspe na noite primordial do universo, eis que a poesia se iguala à terceira das virtudes teologais – a caridade ou o amor –, palavra que o poeta hesita em empregar em suas poesias.

J.A.R. – H.C.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Antiode
(Contra a Poesia Dita Profunda)

A

Poesia te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos
(raros, frágeis, cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

B

Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais

circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis

de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
– pudor de flor –
por seu tão delicado

pudor de flor,
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)

Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de

duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontas

da flor; as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto

e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
– cristais de vômito.

C

Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?

(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite).

Fome de vida? Fome
de morte, frequentação
da morte, como de
algum cinema.

O dia? Árido.
Venha, então, a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.

Venha, mais fácil e
portátil na memória,
o poema, flor no
colete da lembrança.

Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-

cultura? Pois estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;

e mil mornos
enxertos, mil maneiras
de excitar negros
êxtases, e a morna

espera de que se
apodreça em poema,
prévia exalação
de alma defunta.

D

Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:

flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude – em
disfarçados urinóis).

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Flor é o salto
da ave para o voo;
o salto fora do sono
quando seu tecido

se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.

E

Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras

palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,

contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe

como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais. 


Referência:

MELO NETO, João Cabral. Antiode (contra a poesia dita profunda). In: GULLAR, Ferreira (Org.). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro, RJ: Edições de Janeiro, 2014. p. 36-41.

4 comentários:

  1. Acabei de descobrir seu blog. Parabéns pela qualidade das publicações. Amei!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Prezada Lourdes,
      Muito obrigado pelas congratulações e que bom que você gostou: espero poder mantê-lo por muito tempo ainda.
      Um abraço,
      João A. Rodrigues

      Excluir
  2. Quem já leu "O que diz o poeta a respeito da flores" De Rimbaud, percebe a nítida influência do poeta simbolista neste poema de João Cabral de Melo Neto.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito grato pelo comentário, Moisés. A propósito, deixo aqui um 'link' com a tradução ao português a respeito do poema a que você se refere:

      https://lyricstranslate.com/pt-br/ce-quon-dit-au-po%C3%A8te-%C3%A0-propos-de-fleurs-o-que-%C3%A9-dito-ao-poeta-em-rela%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0s-flores.html

      Atenciosamente,
      João A. Rodrigues

      Excluir