Com “Antiode” – algo como o contrário de uma ode, não para enaltecer,
mas para detratar o lirismo descomedido, centrado em estados de alma tão
aclamados pela escola romântica –, João Cabral de Melo Neto vai de encontro à
forma de poesia que se diz “profunda”, preconizando talhes mais objetivos no
trato da palavra escrita.
Como que para contrastar com o vocabulário mais pudico e estrelado da
geração que hostiliza, o poeta lança mão de verbetes algo grotescos, para
descontruir a ideia de que a poesia assemelha-se a uma flor, até esvaziá-la de
toda as suas dimensões conotativas, fazendo-a atingir o veio dos dejetos,
substância elementar de onde toda o material orgânico se origina.
E tornando-se cuspe na noite primordial do universo, eis que a poesia se
iguala à terceira das virtudes teologais – a caridade ou o amor –, palavra que
o poeta hesita em empregar em suas poesias.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Antiode
(Contra a Poesia Dita Profunda)
A
Poesia te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
gerando cogumelos
(raros, frágeis,
cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.
Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie
extinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu
ovário,
suas intestinações.
Esperava as puras,
transparentes
florações,
nascidas do ar, no
ar,
como as brisas.
B
Depois, eu
descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais
circunstâncias?
Vossas
gentis substâncias?
Vossas
doces carnações?
Pelos
virtuosos vergéis
de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
– pudor de flor –
por seu tão delicado
pudor de flor,
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)
Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de
duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontas
da flor; as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto
e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
– cristais de vômito.
C
Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?
(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite).
Fome de vida? Fome
de morte,
frequentação
da morte, como de
algum cinema.
O dia? Árido.
Venha, então, a
noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.
Venha, mais fácil e
portátil na memória,
o poema, flor no
colete da lembrança.
Como não invocar,
sobretudo, o
exercício
do poema, sua
prática,
sua lânguida horti-
cultura? Pois
estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;
e mil mornos
enxertos, mil
maneiras
de excitar negros
êxtases, e a morna
espera de que se
apodreça em poema,
prévia exalação
de alma defunta.
D
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude – em
disfarçados urinóis).
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
Flor é o salto
da ave para o voo;
o salto fora do sono
quando seu tecido
se rompe; é uma
explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.
E
Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras
palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,
contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes
teologais.
Referência:
MELO NETO, João Cabral. Antiode (contra
a poesia dita profunda). In: GULLAR, Ferreira (Org.). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro, RJ:
Edições de Janeiro, 2014. p. 36-41.
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Acabei de descobrir seu blog. Parabéns pela qualidade das publicações. Amei!
ResponderExcluirPrezada Lourdes,
ExcluirMuito obrigado pelas congratulações e que bom que você gostou: espero poder mantê-lo por muito tempo ainda.
Um abraço,
João A. Rodrigues
Quem já leu "O que diz o poeta a respeito da flores" De Rimbaud, percebe a nítida influência do poeta simbolista neste poema de João Cabral de Melo Neto.
ResponderExcluirMuito grato pelo comentário, Moisés. A propósito, deixo aqui um 'link' com a tradução ao português a respeito do poema a que você se refere:
Excluirhttps://lyricstranslate.com/pt-br/ce-quon-dit-au-po%C3%A8te-%C3%A0-propos-de-fleurs-o-que-%C3%A9-dito-ao-poeta-em-rela%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0s-flores.html
Atenciosamente,
João A. Rodrigues