Sobre as letras, muitos já arguiram a proposição de que a compulsão à escrita seria o meio para dar vazão ao que vai de mais recôndito na alma, um
processo catártico, de purificação de nossas alegrias e traumas.
E assim, em meio a muito pessimismo, denominador comum nos seis sonetos
que abaixo transcrevemos – três de poetas brasileiros, outros três de
portugueses –, há um a revelar que mesmo a alegria, caso presente nos versos do
poeta, pode se mostrar falsa, como um fingimento pessoano às avessas, tudo em
razão de que o vate se encontra num mar de carências, necessidades, e precisa
expressar aquilo que venha a agradar à maioria de seus leitores. Bocage que o
diga, lá no desfecho!
J.A.R. – H.C.
Vicente de Carvalho
(1866-1924)
Poeta Brasileiro
Período: Parnasiano
[SANCHES NETO, 2008,
p. 49]
Velho Tema I
Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada
e que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
existe, sim: mas nós não a alcançamos
porque está sempre apenas onde a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos.
Auta de Souza
(1876-1901)
Poetisa Brasileira
Período: Simbolista
[SANCHES NETO, 2008,
p. 65]
Súplica
Se tudo foge e tudo desaparece,
se tudo cai ao vento da Desgraça,
se a vida é o sopro que nos lábios
passa
gelando o ardor da derradeira prece;
se o sonho chora e geme e desfalece
dentro do coração que o amor enlaça,
se a rosa murcha inda em botão, e a
graça
da moça foge quando a idade cresce;
se Deus transforma em sua lei tão pura
a dor das almas que o ideal tortura
na demência feliz de pobres loucos...
se a água do rio para o oceano corre,
se tudo cai, Senhor! por que não morre
a dor sem fim que me devora aos poucos?
Amadeu Amaral
(1875-1929)
Poeta Brasileiro
Período:
Pré-Modernismo
[SANCHES NETO, 2008,
p. 75]
Minha alma é uma casa abandonada
Minha alma é uma casa abandonada,
por cujos tenebrosos corredores
volteia a ronda volatilizada
dos espectros de mortos moradores.
Um dia esta mansão mal-assombrada,
afugentando a treva e seus horrores,
entraste – alegre aparição alada –,
num explodir de claridade e olores;
mas de pronto fugiste, e hoje, silente,
esconde a velha casa à luz do dia
as mesmas sombras, que volteiam
juntas...
Ah! terei de guardar eternamente
na solidão desta alma escura e fria
estas saudades de ilusões defuntas!
❁
Violante do Céu
(1602-1693)
Poetisa Portuguesa
Período: Barroco
[SANCHES NETO, 2008,
p. 90]
Vida que não acaba de acabar-se...
Vida que não acaba de
acabar-se,
chegando já de vós a
despedir-se,
ou deixa por sentida
de sentir-se,
ou pode de imortal
acreditar-se.
Vida que já não chega
a terminar-se,
pois chega já de vós
a dividir-se,
ou procura vivendo
consumir-se,
ou pretende matando
eternizar-se.
O certo é, Senhor,
que não fenece,
antes no que padece
se reporta,
porque não se limite
o que padece.
Mas, viver entre
lágrimas, que importa?
se vida que entre
ausência permanece
é só viva ao pesar,
ao gosto morta.
❁
Cruz e Silva
(1731-1799)
Poeta Português
Período: Neoclássico
[SANCHES NETO, 2008,
p. 97]
De tiranas lembranças combatido...
De tiranas lembranças
combatido
a vida vou passando;
e tal estado
a lembrança me tem do
bem passado,
que antes quisera
nunca haver nascido.
O coração em partes
dividido
corre do peito aos
olhos apressado;
e por mais que o
suspenda violentado,
sai em lágrimas todo
convertido.
Oh se a morte,
vibrando cruelmente
a curva foice, me
roubasse o alento!
Ou ao menos, se o
Fado o não consente,
de todo me faltara o
entendimento!
Pois se a razão
perdesse, juntamente
com ela perderia o
sentimento.
Manuel Maria du Bocage
(1765-1805)
Poeta Português
Período: Neoclássico
[SANCHES NETO, 2008,
p. 103]
Proposição das rimas do poeta
Incultas produções da
mocidade
exponho a vossos
olhos, ó leitores:
vede-as com mágoa,
vede-as com piedade,
Que elas buscam
piedade, e não louvores.
Ponderai da Fortuna a
variedade
nos meus suspiros,
lágrimas e amores;
notai dos males seus
a imensidade,
a curta duração de
seus favores;
e se entre versos mil
de sentimento
encontrardes alguns
cuja aparência
indique festival
contentamento,
crede, ó mortais, que
foram com violência
escritos pela mão do
Fingimento,
cantados pela voz da
Dependência.
Referência:
SANCHES NETO, Miguel (sel. e org.). Os 100 melhores sonetos clássicos da língua
portuguesa. Belo Horizonte (MG): Leitura, 2008.
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