Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Uma Semana com Neruda – (IV) Pleno Outubro

Eis aqui mais um exemplar da poesia insurgente de Neruda, com aquele poder de suscitar a emoção e a consciência social. Trata-se de um poema com mais de uma pessoa linguística interveniente, que se tornam explícitas por meio das formas verbais e pronomes oblíquos empregados.

É como se a primeira pessoa estivesse, de início, a recitar o poema, tomando a dianteira da voz poética; em seguida, uma segunda pessoa, que parece dirigir-se à primeira, passa a reverberar a sua própria consciência.

E então, ao longo dos versos, “pouco a pouco e também muito a muito”, emergem, soberanas, as expressões palpáveis da vida, ora associadas ao plano externo – sol, sal, luz, onda –, ora interno – sangue, o ar que se respira.

E bem no meio, paradoxal como tudo o quanto existe sobre a terra, sobressai a máxima de Neruda, num misto de ironia e de antinomia: “fui castigado, condenado a ser feliz”. Terá conseguido?

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda: 1904-1973
(Caricatura)

II. La Luna em el Labirinto

Pleno Octubre

Poco a poco y también mucho a mucho
me sucedió la vida
y qué insignificante es este asunto:
estas venas llevaron
sangre mia que pocas veces vi,
respiré el aire de tantas regiones
sin guardarme una muestra de ninguno
y a fin de cuentas ya lo saben todos:
nadie se lleva nada de su haber
y la vida fue un préstamo de huesos.
Lo bello fue aprender a no saciarse
de la tristeza ni de la alegría,
esperar el tal vez de una última gota,
pedir más a la miei y a las tinieblas.

Tal vez fui castigado:
tal vez fui condenado a ser feliz.
Quede constancia aquí de que ninguno
pasó cerca de mi sin compartirme.
Y que metí la cuchara hasta el codo
en una adversidad que no era mía,
en el padecimiento de los otros.
No se trató de palma o de partido
sino de poça cosa: no poder
vivir ni respirar con esa sombra,
con esa sombra de otros como torres,
como árboles amargos que lo entierran,
como golpes de piedra en las rodillas.

Tu propia herida se cura con llanto,
tu propia herida se cura con canto,
pero en tu misma puerta se desangra
la viuda, el indio, el pobre, el pescador,
y el hijo del minero no conoce
a su padre entre tantas quemaduras.

Muy bien, pero mi oficio
fue
la plenitud del alma:
un ay del goce que te corta el aire,
un suspiro de planta derribada
o lo cuantitativo de la acción.

Me gustaba crecer con la mañana,
esponjarme en el sol, a plena dicha
de sol, de sal, de luz marina y ola,
y en ese desarrollo de la espuma
fundó mi corazón su movimiento:
crecer con el profundo paroxismo
y morir derramándose en la arena.

Wave Color
(Carlin Blahnik: artista norte-americano)

II. A Lua no Labirinto

Pleno Outubro

Pouco a pouco e também muito a muito
me aconteceu a vida
e que insignificante é este assunto:
estas veias levaram
sangue meu que poucas vezes vi,
respirei o ar de tantas regiões
sem guardar para mim uma amostra de nenhum
e afinal de contas já o sabem todos:
ninguém leva nada de seu
e a vida foi um empréstimo de ossos.
O belo foi aprender a não se saciar
da tristeza nem da alegria,
esperar o talvez de uma última gota,
pedir mais ao mel e às trevas.

Talvez fui castigado:
talvez fui condenado a ser feliz.
Fique afirmado aqui que ninguém
passou perto de mim sem me compartir.
E que meti a colher até o cotovelo
numa adversidade que não era minha,
no padecimento dos outros.
Não se tratou de palma ou de partido
mas de pouca coisa: não poder
viver nem respirar com essa sombra,
com essa sombra de outros como torres,
como árvores amargas que o enterram,
como pancadas de pedra nos joelhos.

A tua própria ferida se cura com pranto,
a tua própria ferida se cura com canto,
mas na tua mesma porta se dessangra
a viúva, o índio, o pobre, o pescador,
e o filho do mineiro não conhece
o seu pai entre tantas queimaduras.

Muito bem, mas o meu ofício
foi
a plenitude da alma:
um ai de gozo que te corta a respiração,
um  suspiro de planta derrubada
ou o quantitativo da ação.

Eu gostava de crescer com a manhã,
embeber-me de sol, com pleno gozo
de sol, de sal, de luz marinha e onda,
e nesse avanço da espuma
fundou meu coração seu movimento:
crescer com o profundo paroxismo
e morrer se derramando na areia.

Referência:

NERUDA, Pablo. Pleno octubre/Pleno outubro. In: __________. Antologia poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 268-270.

Nenhum comentário:

Postar um comentário