Eis aqui mais um exemplar da poesia insurgente de Neruda, com aquele
poder de suscitar a emoção e a consciência social. Trata-se de um poema com
mais de uma pessoa linguística interveniente, que se tornam explícitas por meio
das formas verbais e pronomes oblíquos empregados.
É como se a primeira pessoa estivesse, de início, a recitar o poema,
tomando a dianteira da voz poética; em seguida, uma segunda pessoa, que parece
dirigir-se à primeira, passa a reverberar a sua própria consciência.
E então, ao longo dos versos, “pouco a pouco e também muito a muito”, emergem,
soberanas, as expressões palpáveis da vida, ora associadas ao plano externo –
sol, sal, luz, onda –, ora interno – sangue, o ar que se respira.
E bem no meio, paradoxal como tudo o quanto existe sobre a terra,
sobressai a máxima de Neruda, num misto de ironia e de antinomia: “fui
castigado, condenado a ser feliz”. Terá conseguido?
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda: 1904-1973
(Caricatura)
II. La Luna em el Labirinto
Pleno Octubre
Poco a poco y también
mucho a mucho
me sucedió la vida
y qué insignificante
es este asunto:
estas venas llevaron
sangre mia que pocas
veces vi,
respiré el aire de
tantas regiones
sin guardarme una
muestra de ninguno
y a fin de cuentas ya
lo saben todos:
nadie se lleva nada
de su haber
y la vida fue un
préstamo de huesos.
Lo bello fue aprender
a no saciarse
de la tristeza ni de
la alegría,
esperar el tal vez de
una última gota,
pedir más a la miei y
a las tinieblas.
Tal vez fui
castigado:
tal vez fui condenado
a ser feliz.
Quede constancia aquí
de que ninguno
pasó cerca de mi sin
compartirme.
Y que metí la cuchara
hasta el codo
en una adversidad que
no era mía,
en el padecimiento de
los otros.
No se trató de palma
o de partido
sino de poça cosa: no
poder
vivir ni respirar con
esa sombra,
con esa sombra de
otros como torres,
como árboles amargos
que lo entierran,
como golpes de piedra
en las rodillas.
Tu propia herida se
cura con llanto,
tu propia herida se
cura con canto,
pero en tu misma
puerta se desangra
la viuda, el indio,
el pobre, el pescador,
y el hijo del minero no
conoce
a su padre entre
tantas quemaduras.
Muy bien, pero mi
oficio
fue
la plenitud del alma:
un ay del goce que te
corta el aire,
un suspiro de planta
derribada
o lo cuantitativo de
la acción.
Me gustaba crecer con
la mañana,
esponjarme en el sol,
a plena dicha
de sol, de sal, de
luz marina y ola,
y en ese desarrollo
de la espuma
fundó mi corazón su
movimiento:
crecer con el
profundo paroxismo
y morir derramándose
en la arena.
Wave Color
(Carlin Blahnik:
artista norte-americano)
II. A Lua no Labirinto
Pleno Outubro
Pouco a pouco e
também muito a muito
me aconteceu a vida
e que insignificante
é este assunto:
estas veias levaram
sangue meu que poucas
vezes vi,
respirei o ar de
tantas regiões
sem guardar para mim
uma amostra de nenhum
e afinal de contas já
o sabem todos:
ninguém leva nada de
seu
e a vida foi um
empréstimo de ossos.
O belo foi aprender a
não se saciar
da tristeza nem da
alegria,
esperar o talvez de
uma última gota,
pedir mais ao mel e
às trevas.
Talvez fui castigado:
talvez fui condenado
a ser feliz.
Fique afirmado aqui
que ninguém
passou perto de mim
sem me compartir.
E que meti a colher
até o cotovelo
numa adversidade que
não era minha,
no padecimento dos
outros.
Não se tratou de
palma ou de partido
mas de pouca coisa:
não poder
viver nem respirar
com essa sombra,
com essa sombra de outros
como torres,
como árvores amargas
que o enterram,
como pancadas de
pedra nos joelhos.
A tua própria ferida
se cura com pranto,
a tua própria ferida
se cura com canto,
mas na tua mesma porta
se dessangra
a viúva, o índio, o
pobre, o pescador,
e o filho do mineiro
não conhece
o seu pai entre
tantas queimaduras.
Muito bem, mas o meu
ofício
foi
a plenitude da alma:
um ai de gozo que te
corta a respiração,
um suspiro de planta derrubada
ou o quantitativo da
ação.
Eu gostava de crescer
com a manhã,
embeber-me de sol,
com pleno gozo
de sol, de sal, de luz marinha e onda,
e nesse avanço da
espuma
fundou meu coração
seu movimento:
crescer com o
profundo paroxismo
e morrer se derramando
na areia.
Referência:
NERUDA, Pablo. Pleno octubre/Pleno
outubro. In: __________. Antologia
poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio,
2012. p. 268-270.
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