Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Lêdo Ivo – Os Pobres na Estação Rodoviária

Encontrei o poema em epígrafe numa recolha de poesias do alagoano Lêdo Ivo. Originalmente, ele fez parte da obra “A Noite Misteriosa”, que coligia poemas escritos entre 1973 e 1982.

Na ocasião de minha primeira leitura, toldou-me o entendimento a associação imediata com as cenas de “Central do Brasil”, um filme de 1998, dirigido por Walter Salles. Ali, a personagem Dora, interpretada por ninguém menos que Fernanda Montenegro, escreve cartas para pessoas analfabetas. Mas a associação tem a sua razão de ser: as passagens filmadas na Central são tantas, que em várias delas se percebe o que o poeta sumaria em seus versos.

Central do Brasil
(Walter Salles: 1998)

Vê-se no poema, por seu turno, a capacidade de Lêdo em captar as cenas mais encontradiças nas rodoviárias não só do Brasil, como de boa parte do mundo. E o olhar, que se pressupõe de quase comiseração por parte do poeta, alveja outras tantas miradas de quem, pertencendo a classes sociais mais abastadas, tem o desprezo pelas pessoas menos favorecidas como apanágio.

J.A.R. – H.C.

Lêdo Ivo
(1924-2012)
  
Os Pobres na Estação Rodoviária

Os pobres viajam. Na estação rodoviária
eles alteiam os pescoços como gansos para olhar
os letreiros dos ônibus. E seus olhares...
são de quem teme perder alguma coisa:
a mala que guarda um rádio de pilha e um casaco
que tem a cor do frio num dia sem sonhos,
o sanduíche de mortadela no fundo da sacola,
e o sol de subúrbio e poeira além dos viadutos.
Entre o rumor dos alto-falantes e o arquejo dos ônibus
eles temem perder a própria viagem
escondida na névoa dos horários.
Os que dormitam nos bancos acordam assustados,
embora os pesadelos sejam um privilégio
dos que abastecem os ouvidos e o tédio dos psicanalistas
em consultórios assépticos como o algodão que tapa o nariz dos mortos.
Nas filas os pobres assumem um ar grave
que une temor, impaciência e submissão.
Como os pobres são grotescos! E como os seus odores
nos incomodam mesmo à distância!
E não têm a noção das conveniências, não sabem portar-se em público.
O dedo sujo de nicotina esfrega o olho irritado
que do sonho reteve apenas a remela.
Do seio caído e túrgido um filete de leite
escorre para a pequena boca habituada ao choro.
Na plataforma eles vão e vêm, saltam e seguram malas e embrulhos,
fazem perguntas descabidas nos guichês, sussurram palavras misteriosas
e contemplam as capas das revistas com o ar espantado
de quem não sabe o caminho do salão da vida.
Por que esse ir e vir? E essas roupas espalhafatosas,
esses amarelos de azeite de dendê que doem na vista delicada
e esses vermelhos contundentes de feira e mafuá?
Os pobres não sabem viajar nem sabem vestir-se.
Tampouco sabem morar: não têm noção do conforto
embora alguns deles possuam até televisão.
Na verdade os pobres não sabem nem morrer.
(Têm quase sempre uma morte feia e deselegante).
E em qualquer lugar do mundo eles incomodam,
viajantes importunos que ocupam os nossos lugares
mesmo quando estamos sentados e eles viajam de pé.

Referência:

IVO, Lêdo. Os pobres na estação rodoviária. In: __________. Poesia completa: 1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks/Braskem, 2004. p. 635-636.

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