Encontrei o poema em epígrafe numa recolha de poesias do alagoano Lêdo
Ivo. Originalmente, ele fez parte da obra “A Noite Misteriosa”, que coligia
poemas escritos entre 1973 e 1982.
Na ocasião de minha primeira leitura, toldou-me o entendimento a
associação imediata com as cenas de “Central do Brasil”, um filme de 1998,
dirigido por Walter Salles. Ali, a personagem Dora, interpretada por ninguém
menos que Fernanda Montenegro, escreve cartas para pessoas analfabetas. Mas a associação tem a sua razão de ser: as
passagens filmadas na Central são tantas, que em várias delas se percebe o
que o poeta sumaria em seus versos.
Central do Brasil
(Walter Salles: 1998)
Vê-se no poema, por seu turno, a capacidade de Lêdo em captar as cenas
mais encontradiças nas rodoviárias não
só do Brasil, como de boa parte do mundo. E o olhar, que se pressupõe de quase
comiseração por parte do poeta, alveja outras tantas miradas de quem,
pertencendo a classes sociais mais abastadas, tem o desprezo pelas pessoas
menos favorecidas como apanágio.
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
Os Pobres na Estação Rodoviária
Os pobres viajam. Na
estação rodoviária
eles alteiam os
pescoços como gansos para olhar
os letreiros dos
ônibus. E seus olhares...
são de quem teme
perder alguma coisa:
a mala que guarda um
rádio de pilha e um casaco
que tem a cor do frio
num dia sem sonhos,
o sanduíche de
mortadela no fundo da sacola,
e o sol de subúrbio e
poeira além dos viadutos.
Entre o rumor dos
alto-falantes e o arquejo dos ônibus
eles temem perder a
própria viagem
escondida na névoa
dos horários.
Os que dormitam nos
bancos acordam assustados,
embora os pesadelos
sejam um privilégio
dos que abastecem os
ouvidos e o tédio dos psicanalistas
em consultórios
assépticos como o algodão que tapa o nariz dos mortos.
Nas filas os pobres
assumem um ar grave
que une temor,
impaciência e submissão.
Como os pobres são
grotescos! E como os seus odores
nos incomodam mesmo à
distância!
E não têm a noção das
conveniências, não sabem portar-se em público.
O dedo sujo de
nicotina esfrega o olho irritado
que do sonho reteve
apenas a remela.
Do seio caído e
túrgido um filete de leite
escorre para a
pequena boca habituada ao choro.
Na plataforma eles
vão e vêm, saltam e seguram malas e embrulhos,
fazem perguntas descabidas
nos guichês, sussurram palavras misteriosas
e contemplam as capas
das revistas com o ar espantado
de quem não sabe o
caminho do salão da vida.
Por que esse ir e
vir? E essas roupas espalhafatosas,
esses amarelos de
azeite de dendê que doem na vista delicada
e esses vermelhos
contundentes de feira e mafuá?
Os pobres não sabem
viajar nem sabem vestir-se.
Tampouco sabem morar:
não têm noção do conforto
embora alguns deles
possuam até televisão.
Na verdade os pobres
não sabem nem morrer.
(Têm quase sempre uma
morte feia e deselegante).
E em qualquer lugar
do mundo eles incomodam,
viajantes importunos
que ocupam os nossos lugares
mesmo quando estamos
sentados e eles viajam de pé.
Referência:
IVO, Lêdo. Os pobres na estação
rodoviária. In: __________. Poesia completa:
1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks/Braskem, 2004. p. 635-636.
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