Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Uma Semana com Neruda – (II) Ode ao Dicionário

Aos que, pejorativamente, preferem o designativo de “pai dos burros” para os dicionários, contrapomo-nos a tal ideia transcrevendo uma longa ode que faz, diversamente, a apologia deles.

Não um repositório mudo e ultrapassado das palavras de um idioma, que Neruda corretamente associa a um túmulo ou a um mausoléu, mas a fonte vernacular viva, em que todos vêm se abeberar para conhecer a etimologia e o significado dos vocábulos, verbetes, epígrafes. Não um sepulcro, portanto, mas uma “plantação de rubis”.

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda: 1904-1973
(Caricatura)

Oda al Diccionario

Lomo de buey, pesado
cargador, sistemático
libro espeso:
de joven
te ignore, me vistió
la suficiencia
y me creí repleto,
y orondo como un
melancólico sapo
dictaminé: “Recibo
las palabras
directamente
del Sinaí bramante.
Reduciré
las formas a la alquimia.
Soy mago”.

El gran mago callaba.

El Diccionario,
viejo y pesado, con su chaquetón
de pellejo gastado,
se quedó silencioso
sin mostrar sus probetas.

Pero un día,
después de haberlo usado
y desusado,
después
de declararlo
inútil y anacrónico camello,
cuando por largos meses, sin protesta,
me sirvió de sillón
y de almohada,
se rebeló y plantándose
en mi puerta
creció, movió sus hojas
y sus nidos,
movió la elevación de su follaje:
árbol
era,
natural,
generoso
manzano, manzanar o manzanero,
y las palabras
brillaban en su copa inagotable,
opacas o sonoras,
fecundas en la fronda del lenguaje,
cargadas de verdad y de sonido.

Aparto una
sola de
sus
páginas:
Caporal
Capuchón
qué maravilla
pronunciar estas sílabas
con aire,
y más abajo
Cápsula
hueca, esperando aceite o ambrocía
y junto a ellas
Captura Capucete Capuchina
Capratio Captatorio
palabras
que se deslizan como suaves uvas
o que a la luz estallan
como gérmenes ciegos que esperaron
en las bodegas del vocabulario
y viven otra vez y dan la vida:
una vez más el corazón las quema.

Diccionario, no eres
tumba, sepulcro, féretro,
túmulo, mausoleo,
sino preservación,
fuego escondido,
plantación de rubíes,
perpetuidad viviente
de la esencia,
granero del idioma.
Y es hermoso
recoger en tus filas
la palabra
de estirpe,
la severa
y olvidada
sentencia,
hija de España,
endurecida
como reja de arado,
fija en su límite
de anticuada herramienta,
preservada
con su hermosura exacta
y su dureza de medalla.
O la otra
palabra
que allí vimos perdida
entre renglones
y que de pronto
se hizo sabrosa y lisa en nuestra boca
como una almendra
o tierna como un higo.

Diccionario, una mano
de tus mil manos, una
de tus mil esmeraldas,
una
sola
gota
de tus vertientes virginales,
un grano
de
tus
magnánimos graneros
en el momento
justo
a mis labios conduce,
al hilo de mi pluma,
a mi tintero.
De tu espesa y sonora
profundidad de selva,
dame,
cuando lo necesite,
un solo trino, el lujo
de una abeja,
un fragmento caído
de tu antigua madera perfumada
por una eternidade de jazmineros,
una
sílaba,
un temblor, un sonido,
una semilla:
de ti erra soy y con palabras canto.


Ode ao Dicionário

Lombo de boi, pesado
carregador, sistemático
livro grosso:
quando jovem
te ignorei, me vestiu
a suficiência
e me acreditei repleto,
e inchado como um
melancólico sapo
conclui: “Recebo
las palavras
diretamente
do Sinai bramante.
Reduzirei
as formas à alquimia.
Sou mágico”.

O grande mágico se calava.

O Dicionário,
velho e pesado, com o seu jaquetão
de couro gasto,
ficou silencioso
sem mostrar as suas provetas.

Mas um dia,
depois de tê-lo usado
e desusado,
depois de declará-lo
inútil e anacrônico camelo,
quando por longos meses, sem protesto,
me serviu de poltrona
e de travesseiro,
rebelou-se e se plantando
na minha porta
cresceu, movimentou as suas folhas
e os seus ninhos,
moveu a elevação da sua folhagem:
árvore
era,
natural,
generoso
manzano, manzanar ou manzanero,
e as palavras
brilhavam na sua taça inesgotável,
opacas ou sonoras,
fecundas nas ramas da linguagem,
carregadas de verdade e de som.

Separo uma
só das
suas páginas:
Caporal
Capuchón
que maravilha
pronunciar estas sílabas
com fôlego,
e mais abaixo
Cápsula
oca, esperando azeite ou ambrósia
e junto a elas
Captura Capucete Capuchina
Capracio Captatorio
palavras
que deslizam como suaves uvas
ou que à luz estalam
como germes cegos que esperaram
nas adegas do vocabulário
e vivem outra vez e dão a vida:
uma vez mais o coração as queima.

Dicionário, não és
tumba, sepulcro, féretro,
túmulo, mausoléu,
mas preservação,
fogo escondido,
plantação de rubis,
perpetuidade viva
da essência,
celeiro do idioma.
E é bonito
recolher nas tuas filas
a palavra de estirpe,
a severa
e esquecida
sentença,
filha da Espanha,
endurecida
como grade de arado,
fixa no seu limite
de antiquada ferramenta,
preservada
com a sua formosura exata
e a sua dureza de medalha.
Ou a outra
palavra
que ali vimos perdida
entre linhas
e que de repente
se fez saborosa e lisa na nossa boca
como uma amêndoa
ou macia como um figo.

Dicionário, uma mão
das tuas mil mãos, uma
das tuas mil esmeraldas,
uma
gota
das tuas vertentes virginais,
um grão
dos
teus
magnânimos celeiros
no momento
justo
aos meus lábios conduz,
ao fio da minha pena,
ao meu tinteiro.
Da tua espessa e sonora
profundidade de selva,
dá-me,
quando o necessite,
um só trinado, o luxo
de uma abelha,
um fragmento caído
da tua antiga madeira perfumada
por uma eternidade de jasmineiros,
uma
sílaba,
um tremor, um som,
uma semente:
de terra sou e com palavras canto.

Referência:

NERUDA, Pablo. Oda al diccionario/Ode ao dicionário. In: __________. Antologia poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 209-214.

Nenhum comentário:

Postar um comentário