Aos que, pejorativamente, preferem o
designativo de “pai dos burros” para os dicionários, contrapomo-nos a tal ideia
transcrevendo uma longa ode que faz, diversamente, a apologia deles.
Não um repositório mudo e ultrapassado
das palavras de um idioma, que Neruda corretamente associa a um túmulo ou a um
mausoléu, mas a fonte vernacular viva, em que todos vêm se abeberar para
conhecer a etimologia e o significado dos vocábulos, verbetes, epígrafes. Não
um sepulcro, portanto, mas uma “plantação de rubis”.
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda: 1904-1973
(Caricatura)
Oda al Diccionario
Lomo de buey, pesado
cargador, sistemático
libro espeso:
de joven
te ignore, me vistió
la suficiencia
y me creí repleto,
y orondo como un
melancólico sapo
dictaminé: “Recibo
las palabras
directamente
del Sinaí bramante.
Reduciré
las formas a la
alquimia.
Soy mago”.
El gran mago callaba.
El Diccionario,
viejo y pesado, con
su chaquetón
de pellejo gastado,
se quedó silencioso
sin mostrar sus
probetas.
Pero un día,
después de haberlo
usado
y desusado,
después
de declararlo
inútil y anacrónico
camello,
cuando por largos
meses, sin protesta,
me sirvió de sillón
y de almohada,
se rebeló y
plantándose
en mi puerta
creció, movió sus
hojas
y sus nidos,
movió la elevación de
su follaje:
árbol
era,
natural,
generoso
manzano, manzanar o manzanero,
y las palabras
brillaban en su copa inagotable,
opacas o sonoras,
fecundas en la fronda
del lenguaje,
cargadas de verdad y
de sonido.
Aparto una
sola de
sus
páginas:
Caporal
Capuchón
qué maravilla
pronunciar estas
sílabas
con aire,
y más abajo
Cápsula
hueca, esperando
aceite o ambrocía
y junto a ellas
Captura Capucete Capuchina
Capratio Captatorio
palabras
que se deslizan como
suaves uvas
o que a la luz
estallan
como gérmenes ciegos
que esperaron
en las bodegas del
vocabulario
y viven otra vez y
dan la vida:
una vez más el
corazón las quema.
Diccionario, no eres
tumba, sepulcro,
féretro,
túmulo, mausoleo,
sino preservación,
fuego escondido,
plantación de rubíes,
perpetuidad viviente
de la esencia,
granero del idioma.
Y es hermoso
recoger en tus filas
la palabra
de estirpe,
la severa
y olvidada
sentencia,
hija de España,
endurecida
como reja de arado,
fija en su límite
de anticuada
herramienta,
preservada
con su hermosura
exacta
y su dureza de
medalla.
O la otra
palabra
que allí vimos
perdida
entre renglones
y que de pronto
se hizo sabrosa y
lisa en nuestra boca
como una almendra
o tierna como un
higo.
Diccionario, una mano
de tus mil manos, una
de tus mil
esmeraldas,
una
sola
gota
de tus vertientes
virginales,
un grano
de
tus
magnánimos graneros
en el momento
justo
a mis labios conduce,
al hilo de mi pluma,
a mi tintero.
De tu espesa y sonora
profundidad de selva,
dame,
cuando lo necesite,
un solo trino, el
lujo
de una abeja,
un fragmento caído
de tu antigua madera
perfumada
por una eternidade de
jazmineros,
una
sílaba,
un temblor, un
sonido,
una semilla:
de ti erra soy y con
palabras canto.
Ode ao Dicionário
Lombo de boi, pesado
carregador,
sistemático
livro grosso:
quando jovem
te ignorei, me vestiu
a suficiência
e me acreditei
repleto,
e inchado como um
melancólico sapo
conclui: “Recebo
las palavras
diretamente
do Sinai bramante.
Reduzirei
as formas à alquimia.
Sou mágico”.
O grande mágico se
calava.
O Dicionário,
velho e pesado, com o
seu jaquetão
de couro gasto,
ficou silencioso
sem mostrar as suas
provetas.
Mas um dia,
depois de tê-lo usado
e desusado,
depois de declará-lo
inútil e anacrônico
camelo,
quando por longos
meses, sem protesto,
me serviu de poltrona
e de travesseiro,
rebelou-se e se
plantando
na minha porta
cresceu, movimentou
as suas folhas
e os seus ninhos,
moveu a elevação da
sua folhagem:
árvore
era,
natural,
generoso
manzano, manzanar ou manzanero,
e as palavras
brilhavam na sua taça
inesgotável,
opacas ou sonoras,
fecundas nas ramas da
linguagem,
carregadas de verdade
e de som.
Separo uma
só das
suas páginas:
Caporal
Capuchón
que maravilha
pronunciar estas
sílabas
com fôlego,
e mais abaixo
Cápsula
oca, esperando azeite
ou ambrósia
e junto a elas
Captura Capucete Capuchina
Capracio Captatorio
palavras
que deslizam como
suaves uvas
ou que à luz estalam
como germes cegos que
esperaram
nas adegas do vocabulário
e vivem outra vez e
dão a vida:
uma vez mais o coração
as queima.
Dicionário, não és
tumba, sepulcro,
féretro,
túmulo, mausoléu,
mas preservação,
fogo escondido,
plantação de rubis,
perpetuidade viva
da essência,
celeiro do idioma.
E é bonito
recolher nas tuas filas
a palavra de estirpe,
a severa
e esquecida
sentença,
filha da Espanha,
endurecida
como grade de arado,
fixa no seu limite
de antiquada
ferramenta,
preservada
com a sua formosura
exata
e a sua dureza de
medalha.
Ou a outra
palavra
que ali vimos perdida
entre linhas
e que de repente
se fez saborosa e
lisa na nossa boca
como uma amêndoa
ou macia como um
figo.
Dicionário, uma mão
das tuas mil mãos,
uma
das tuas mil
esmeraldas,
uma
só
gota
das tuas vertentes
virginais,
um grão
dos
teus
magnânimos celeiros
no momento
justo
aos meus lábios
conduz,
ao fio da minha pena,
ao meu tinteiro.
Da tua espessa e
sonora
profundidade de
selva,
dá-me,
quando o necessite,
um só trinado, o luxo
de uma abelha,
um fragmento caído
da tua antiga madeira
perfumada
por uma eternidade de
jasmineiros,
uma
sílaba,
um tremor, um som,
uma semente:
de terra sou e com
palavras canto.
Referência:
NERUDA, Pablo. Oda al diccionario/Ode
ao dicionário. In: __________. Antologia
poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio,
2012. p. 209-214.
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