Num belo poema em que evoca as diferentes fases de sua vida, Neruda as
caracteriza como formas distintas da mesma “fome” de viver e de criar, todas a
convergir para um afã de felicidade.
Nesse trânsito ininterrupto do ser, ali estão as vetustas perguntas
ontológicas que perpassam as mentes de cada ser humano: o quê e quem somos
nós?, dúvidas essenciais que experimentamos tanto num plano singular, quanto
coletivamente. O que ontem fomos, já não somos hoje, quer se refira a Neruda,
individualmente, quer se aluda às pessoas com quem conviveu, ao povo chileno ou
a toda a humanidade.
A voz do poeta de hoje, maduro, sessentão, entra em conjunção com a voz
memorial da criança. Mas o diálogo às vezes parece obliterado pela distância.
Afinal, o infante de ontem já não reconhece o mesmo ente em que se converteu,
depois de transcorrido o tempo.
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda: 1904-1973
(Caricatura)
EL Niño Perdido
Lenta infancia de
donde
como de un pasto
largo
crece el duro
pistilo,
la madera del hombre,
Quién fui? Qué fui?
Qué fuimos?
No hay respuesta.
Pasamos.
No fuimos. Éramos.
Otros pies,
otras manos, otros
ojos.
Todo se fue mudando
hoja por hoja
en el árbol. Y en ti?
Cambió tu piei,
tu pelo, tu memoria.
Aquél no fuiste,
Aquél fue un niño que
pasó corriendo
detrás de un río, de
una bicicleta,
y con el movimiento
se fue tu vida con
aquel minuto.
La falsa identidad
siguió tus pasos.
Día a día las horas
se amarraron,
pero tú ya no fuiste,
vino el otro,
el otro tú, y el otro
hasta que fuiste,
hasta que te sacaste
del propio pasajero,
del tren, de los
vagones de la vida,
de la substitución, del
caminante.
La máscara del niño
fue cambiando,
adelgazó su condición
doliente,
aquietó su cambiante
poderío:
el esqueleto se
mantuvo firme,
la construcción del
hueso se mantuvo,
la sonrisa,
el paso, un gesto
volador, el eco
de aquel niño desnudo
que salió de un relámpago,
pero fue el
crecimiento como un traje!
Era otro el hombre y
lo llevó prestado.
Así pasó conmigo.
De silvestre
llegué a ciudad, a
gas, a rostros crueles
que midieron mi luz y
mi estatura,
llegué a mujeres que
en mí se buscaron
como si a mí se me
hubieran perdido,
y así fue sucediendo
el hombre impuro,
hijo del hijo puro,
hasta que nada fue
como había sido,
y de repente apareció
en mi rostro
un rostro de
extranjero
y era también yo
mismo:
era yo que crecía,
eras tú que crecías,
era todo
y cambiamos
y nunca más supimos
quiénes éramos,
y a veces recordamos
al que vivió en
nosotros
y le pedimos algo tal
vez que nos recuerde,
que sepa por lo menos
que fuimos él, que hablamos
con su lengua,
pero desde las horas
consumidas
aquél nos mira y no
nos reconoce.
A Persistência da Memória
(Salvador Dalí:
1904-1989)
O Menino Perdido
Lenta infância de
onde
como de um pasto
comprido
cresce o duro pistilo,
a madeira do homem.
Quem fui? O que fui?
O que fomos?
Não há resposta.
Passamos.
Não fomos. Éramos.
Outros pés,
outras mãos, outros
olhos.
Tudo foi mudando
folha por folha
na árvore. E em ti?
Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua
memória. Aquele não foste.
Aquele foi um menino
que passou correndo
atrás de um rio, de
uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com
aquele minuto.
A falsa identidade
seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se
amarraram,
mas tu já não foste,
veio o outro,
o outro tu, e o outro
até que foste,
até que te arrancaste
do próprio
passageiro,
do trem, dos vagões
da vida,
da substituição, do
caminhante.
A máscara do menino
foi mudando,
emagreceu a sua
condição enfermiça,
aquietou-se o seu
volúvel poderio:
o esqueleto se
manteve firme,
a construção do osso
se manteve,
o sorriso,
o passo, o gesto
voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento
como um traje!
Era outro o homem e o
levou emprestado.
Assim aconteceu
comigo.
De silvestre
cheguei a cidade, a
gás, a rostos cruéis
que mediram a minha
luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres
que em mim se procuraram
como se a mim tivessem
perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como
tinha sido,
e de repente apareceu
no meu rosto
um rosto de
estrangeiro
e era também eu
mesmo:
era eu que crescia,
eras tu que crescias,
era tudo
e mudamos
e nunca mais soubemos
quem éramos,
e às vezes recordamos
aquele que viveu em
nós
e lhe pedimos algo,
talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos
que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não
nos reconhece.
P.s.: Este poema de Neruda fez-me lembrar da obra “O Menino no Espelho”,
de Fernando Sabino. Leiam no epílogo do livro em questão, como Sabino sumaria e
retrata a sua época de criança: um homem fisicamente em seu apartamento, em
Ipanema (RJ), mas a mente a vagar por suas estripulias, na antiga casa com
quintal, em Belo Horizonte (MG).
Referência:
NERUDA, Pablo. El niño perdido/O menino
perdido. In: __________. Antologia
poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio,
2012. p. 264-267.
Nenhum comentário:
Postar um comentário