Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Uma Semana com Neruda – (III) O Menino Perdido

Num belo poema em que evoca as diferentes fases de sua vida, Neruda as caracteriza como formas distintas da mesma “fome” de viver e de criar, todas a convergir para um afã de felicidade.

Nesse trânsito ininterrupto do ser, ali estão as vetustas perguntas ontológicas que perpassam as mentes de cada ser humano: o quê e quem somos nós?, dúvidas essenciais que experimentamos tanto num plano singular, quanto coletivamente. O que ontem fomos, já não somos hoje, quer se refira a Neruda, individualmente, quer se aluda às pessoas com quem conviveu, ao povo chileno ou a toda a humanidade.

A voz do poeta de hoje, maduro, sessentão, entra em conjunção com a voz memorial da criança. Mas o diálogo às vezes parece obliterado pela distância. Afinal, o infante de ontem já não reconhece o mesmo ente em que se converteu, depois de transcorrido o tempo.

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda: 1904-1973
(Caricatura)

EL Niño Perdido

Lenta infancia de donde
como de un pasto largo
crece el duro pistilo,
la madera del hombre,

Quién fui? Qué fui? Qué fuimos?

No hay respuesta. Pasamos.
No fuimos. Éramos. Otros pies,
otras manos, otros ojos.
Todo se fue mudando hoja por hoja
en el árbol. Y en ti? Cambió tu piei,
tu pelo, tu memoria. Aquél no fuiste,
Aquél fue un niño que pasó corriendo
detrás de un río, de una bicicleta,
y con el movimiento
se fue tu vida con aquel minuto.
La falsa identidad siguió tus pasos.
Día a día las horas se amarraron,
pero tú ya no fuiste, vino el otro,
el otro tú, y el otro hasta que fuiste,
hasta que te sacaste
del propio pasajero,
del tren, de los vagones de la vida,
de la substitución, del caminante.
La máscara del niño fue cambiando,
adelgazó su condición doliente,
aquietó su cambiante poderío:
el esqueleto se mantuvo firme,
la construcción del hueso se mantuvo,
la sonrisa,
el paso, un gesto volador, el eco
de aquel niño desnudo
que salió de un relámpago,
pero fue el crecimiento como un traje!
Era otro el hombre y lo llevó prestado.

Así pasó conmigo.

De silvestre
llegué a ciudad, a gas, a rostros crueles
que midieron mi luz y mi estatura,
llegué a mujeres que en mí se buscaron
como si a mí se me hubieran perdido,
y así fue sucediendo
el hombre impuro,
hijo del hijo puro,
hasta que nada fue como había sido,
y de repente apareció en mi rostro
un rostro de extranjero
y era también yo mismo:
era yo que crecía,
eras tú que crecías,
era todo
y cambiamos
y nunca más supimos quiénes éramos,
y a veces recordamos
al que vivió en nosotros
y le pedimos algo tal vez que nos recuerde,
que sepa por lo menos que fuimos él, que hablamos
con su lengua,
pero desde las horas consumidas
aquél nos mira y no nos reconoce.

A Persistência da Memória
(Salvador Dalí: 1904-1989)

O Menino Perdido

Lenta infância de onde
como de um pasto comprido
cresce o duro pistilo, a madeira do homem.

Quem fui? O que fui? O que fomos?

Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando folha por folha
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele não foste.
Aquele foi um menino que passou correndo
atrás de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já não foste, veio o outro,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a construção do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, o gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.

Assim aconteceu comigo.

De silvestre
cheguei a cidade, a gás, a rostos cruéis
que mediram a minha luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres que em mim se procuraram
como se a mim tivessem perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como tinha sido,
e de repente apareceu no meu rosto
um rosto de estrangeiro
e era também eu mesmo:
era eu que crescia,
eras tu que crescias,
era tudo
e mudamos
e nunca mais soubemos quem éramos,
e às vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo, talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.

P.s.: Este poema de Neruda fez-me lembrar da obra “O Menino no Espelho”, de Fernando Sabino. Leiam no epílogo do livro em questão, como Sabino sumaria e retrata a sua época de criança: um homem fisicamente em seu apartamento, em Ipanema (RJ), mas a mente a vagar por suas estripulias, na antiga casa com quintal, em Belo Horizonte (MG).

Referência:

NERUDA, Pablo. El niño perdido/O menino perdido. In: __________. Antologia poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 264-267.

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