Plenos de um lirismo ao mesmo tempo belo e inclemente, os poemas de Anna
Akhmátova expressam a sua dedicação à arte e o amor incondicional à terra natal.
Emoção e tragédia se mesclam em seus versos, a contornar por meio de sonoras palavras
o silêncio aviltante que lhe foi imposto.
Versos como os do poema que selecionamos de sua Antologia Poética, sobre
“Os Mistérios do Ofício”: relembra-nos Anna que a poesia pode ter origem nos
mananciais mais fortuitos. O cheiro do alcatrão ou o bolor na parede, tudo se
transfigura em bica de onde o poeta extrai o portento da beleza.
Nota: Anna Akhmátova (1889-1966), ucraniana, assim como Maksym Rylsky
(vide postagem anterior), também frequentou a clássica Universidade Nacional
Taras Shevchenko de Kiev.
J.A.R. – H.C.
Anna Akhmátova
(Pintura de Nathan
Altman: 1889-1970)
SÉTIMO LIVRO
(Siedmáia Kniga)
1963-1964
O sétimo véu da névoa
caiu –
o que é seguido pela
primavera
T.K.
DE “OS MISTÉRIOS DO
OFÍCIO”
1
CRIAÇÃO
É assim que acontece:
um cansaço qualquer;
nos ouvidos não se
cala a luta das horas;
à distância ouço o
estrondo do trovão.
Vozes cativas,
irreconhecíveis,
Pareço ouvir,
queixando-se e gemendo:
estreita-se assim o
círculo secreto.
Mas desse abismo de
sons e de sussurros
Brota uma voz cada
vez mais possante.
À sua volta, é tão
pesado o silêncio
que dá para ouvir, no
bosque, a relva crescendo
e como a desventura
segue mundo afora, alforje às costas.
Mas eis que já se
ouvem as palavras –
e as campainhas que
anunciam leves rimas
só então começo a
compreender
e, aos poucos, os
versos que me estão sendo ditados
Vão se acomodando na
alvura do caderno.
5/11/1936
2
De que servem
exércitos de canções
e o encanto das
elegias sentimentais?
Para mim, na poesia,
tudo tem de ser desmesurado,
e não do jeito como
todo mundo faz.
Se vocês soubessem de
que lixeira
saem,
desavergonhados, os versos,
como dente-de-leão
que brota ao pé da cerca,
como a bardana ou o
cogumelo.
Um grito que vem do
coração, o cheiro fresco de alcatrão,
o bolor oculto na
parede…
E, de repente, a
poesia soa, calorosa, tenra,
para a minha e para a
tua alegria.
21/1/1940
Referência:
AKHMÁTOVA, Anna. Os mistérios do
ofício. In: __________. Antologia
poética. Seleção, tradução do russo, apresentação e notas de Lauro Machado
Coelho. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 99-100.
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