Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Anna Akhmátova - Os Mistérios do Ofício

Plenos de um lirismo ao mesmo tempo belo e inclemente, os poemas de Anna Akhmátova expressam a sua dedicação à arte e o amor incondicional à terra natal. Emoção e tragédia se mesclam em seus versos, a contornar por meio de sonoras palavras o silêncio aviltante que lhe foi imposto.

Versos como os do poema que selecionamos de sua Antologia Poética, sobre “Os Mistérios do Ofício”: relembra-nos Anna que a poesia pode ter origem nos mananciais mais fortuitos. O cheiro do alcatrão ou o bolor na parede, tudo se transfigura em bica de onde o poeta extrai o portento da beleza.

Nota: Anna Akhmátova (1889-1966), ucraniana, assim como Maksym Rylsky (vide postagem anterior), também frequentou a clássica Universidade Nacional Taras Shevchenko de Kiev.

J.A.R. – H.C.

Anna Akhmátova
(Pintura de Nathan Altman: 1889-1970)

SÉTIMO LIVRO
(Siedmáia Kniga)
1963-1964

O sétimo véu da névoa caiu –
o que é seguido pela primavera
T.K.

DE “OS MISTÉRIOS DO OFÍCIO”

1

CRIAÇÃO

É assim que acontece: um cansaço qualquer;
nos ouvidos não se cala a luta das horas;
à distância ouço o estrondo do trovão.
Vozes cativas, irreconhecíveis,
Pareço ouvir, queixando-se e gemendo:
estreita-se assim o círculo secreto.
Mas desse abismo de sons e de sussurros
Brota uma voz cada vez mais possante.
À sua volta, é tão pesado o silêncio
que dá para ouvir, no bosque, a relva crescendo
e como a desventura segue mundo afora, alforje às costas.
Mas eis que já se ouvem as palavras –
e as campainhas que anunciam leves rimas
só então começo a compreender
e, aos poucos, os versos que me estão sendo ditados
Vão se acomodando na alvura do caderno.

5/11/1936

2

De que servem exércitos de canções
e o encanto das elegias sentimentais?
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado,
e não do jeito como todo mundo faz.

Se vocês soubessem de que lixeira
saem, desavergonhados, os versos,
como dente-de-leão que brota ao pé da cerca,
como a bardana ou o cogumelo.

Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão,
o bolor oculto na parede…
E, de repente, a poesia soa, calorosa, tenra,
para a minha e para a tua alegria.

21/1/1940

Referência:

AKHMÁTOVA, Anna. Os mistérios do ofício. In: __________. Antologia poética. Seleção, tradução do russo, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 99-100.

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