Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Hermann Hesse – Felicidade

Quando se pergunta às pessoas o que elas entendem por “felicidade”, as respostas, quase sempre, apontam para os mais distintos caminhos. Aristóteles, por exemplo, via a felicidade na busca do supremo bem, a ser alcançado pela via da vida contemplativa proporcionada pela filosofia. Eis aí a visão de um filósofo.

Vinicius de Moraes, enquanto poeta, nos dá uma definição na qual sobressai o lado mais fugaz da felicidade: “A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor; brilha tranquila, depois de leve oscila, e cai como uma lágrima de amor”. Mais à frente, na mesma poesia, repete o padrão: “A felicidade é como a pluma, que o vento vai levando pelo ar; voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar”. E o refrão sintetiza – “Tristeza não tem fim, felicidade sim” – a nos relembrar que a tristeza parece ser o elemento-motor da atividade poética dos grandes escritores.

Mas há um tipo de felicidade mais complexa, ou melhor, mais difusa, que emerge enquanto somatória de muitos fatores convergindo para um estado de preenchimento do espírito, por meio da literatura, pela música, pelas artes de um modo geral, pela meditação, pela caridade, pela sensação de bem-estar e equilíbrio com os outros seres da natureza, flora e fauna, o ser humano aí incluso etc.

Para termos a visão de um homem e escritor que experimentou bastantes coisas durante toda a sua longa vida, transcrevemos um pequeno ensaio do Nobel de Literatura de 1946, Hermann Hesse, sobre o tema. Obviamente que o fato de haver entrado em contato com concepções filosóficas orientais e ocidentais, permitiu-lhe ter uma vida que, aos olhos dos outros, pareceu muito próximo do que se diria “plena”.

J.A.R. – H.C.

Hermann Hesse
(1877-1962)

Felicidade

O ser humano, como Deus o imaginou e a literatura e sabedoria dos povos o entenderam por muitos milhares de anos, foi criado com uma capacidade de alegrar-se com as coisas mesmo que não lhe sejam úteis, com um órgão reservado para apreciar o que é belo.
Espírito e sentidos sempre participaram em igual medida nessa alegria do homem pelo belo, e enquanto pessoas forem capazes de se alegrar, no meio de pressões e perigos, com coisas como as cores da natureza ou um quadro pintado, o chamado da voz da tempestade ou da música feita pelo homem, enquanto atrás da superfície dos interesses e necessidades o mundo puder ser visto ou sentido como um todo onde existe uma ligação do movimento de um gato com as variações de uma sonata, do comovente olhar de um cão com a tragédia de um escritor, num reino múltiplo de mil relações, correspondências, numa linguagem eternamente fluindo para dar ao ouvinte alegria e sabedoria, divertimento e emoção – enquanto isso existir, o homem poderá sempre voltar a dominar suas fragilidades e atribuir um sentido à sua existência, pois “sentido” é aquela unidade do múltiplo, ou aquela capacidade do espírito de pressentir unidade e harmonia na confusão do mundo.
Para o verdadeiro ser humano, íntegro, inteiro e intacto, o mundo se justifica e Deus se justifica incessantemente através de milagres como este: que além do frio da noite e do fim do período de trabalho exista algo como a atmosfera vermelha no crepúsculo e as fascinantes transições do rosa ao violeta, ou algo como as mutações do resto de uma pessoa quando, em mil transições, é recoberta, como o céu noturno, pelo milagre do sorriso; ou que existam as naves e janelas de uma catedral, a ordem dos estames no cálice da flor, o violino feito de madeira, a escala de sons, algo tão inconcebível, delicado, fruto do espírito e da natureza, racional e ao mesmo tempo suprarracional e infantil como a linguagem.
A linguagem com suas belezas e surpresas, seus enigmas, sua aparente perenidade, mesmo assim não está livre de fraquezas, enfermidades, perigos aos quais está exposto tudo o que é humano – e isso a torna para nós, seus discípulos e servos, um dos mais misteriosos e nobres fenômenos na terra.
E não é apenas que cada povo ou comunidade cultural tenha criado a linguagem que corresponda a suas origens e ao mesmo tempo sirva aos seus projetos ainda não pronunciados, não apenas que um povo possa aprender, admirar, rir da linguagem de outro povo e mesmo assim nunca a entender inteiramente! Não: também para cada indivíduo, na medida em que ele não viva em um mundo ainda afásico ou excessivamente mecanizado e por isso mesmo novamente afásico, a linguagem é um bem pessoal; para cada falante, portanto para cada ser humano inteiro e íntegro, palavras, sílabas, letras e formas, e as possibilidades da sintaxe, têm seu valor especial que só a elas cabe, e cada linguagem legítima pode ser sentida e vivida por cada pessoa de maneira totalmente pessoal e única, ainda que ela não se dê conta de nada disso.
Assim como houve músicos que preferiram certos instrumentos ou tonalidades de voz, ou se aborreciam particularmente com eles, ou deles desconfiavam, assim a maioria das pessoas, na medida em que têm um senso de linguagem, preferem certas vogais e séries de letras enquanto evitam outras; e se alguém ama um escritor em especial, ou o rejeita, também o gosto linguístico e o ouvido linguístico desse escritor participa disso, sendo familiares ou estranhos a seu leitor.
Eu poderia, por exemplo, mencionar uma série de versos e poemas que amei décadas a fio e ainda amo, não pelo sentido, sabedoria ou conteúdo em experiência, bondade, grandeza, mas unicamente por uma determinada rima, um determinado desvio rítmico do esquema convencional, a escolha de vogais preferidas, que o escritor pode ter feito de modo tão inconsciente quanto o leitor que as exercita.
Da construção e ritmo do texto de Goethe ou Brentano, de Lessing ou E. Th. A. Hoffmann, pode-se deduzir muito mais sobre as características, a tendência física e espiritual do escritor, do que daquilo que esse trecho de prosa nos diz. Há frases que podem estar no texto de vários escritores, e outras que só seriam possíveis em um único desses músicos da linguagem. Para nós as palavras são a mesma coisa que as cores da paleta são para o pintor. Existem incontáveis delas, e surgem sempre novas, mas as boas palavras, as verdadeiras, são menos numerosas, e em setenta anos de vida não vi surgir nenhuma nova.
Também as cores não existem em muito grande número, ainda que suas tonalidades e misturas sejam incontáveis. Entre as palavras existem para cada falante as prediletas e as estranhas, preferidas e evitadas, cotidianas – que se usam mil vezes sem temer o desgaste – e outras – solenes – que, por mais que as amemos, só pronunciamos ou escrevemos com cuidado e reflexão, como objetos raros: fazendo as escolhas que correspondem a essa sua solenidade.
Entre elas está para mim a palavra felicidade.
E uma dessas que sempre amei e escutei com prazer. Por mais que se discuta e argumente sobre seu significado, seja como for ela significa algo belo, bom e desejável. E acho que o som da palavra corresponde a isso.
Parece-me que essa palavra, apesar de sua brevidade (*), tem algo de espantosamente denso e cheio, algo que lembra ouro, e com certeza além da plenitude e densidade também lhe é próprio o brilho que parece morar em suas breves sílabas como o raio nas nuvens, começando tão fluida e sorridente, repousando com um sorriso no meio, e terminando de maneira tão decidida.
Era uma palavra para rir e chorar, cheia de fascinação e sensualidade. Se a quiséssemos sentir direito, bastava colocar ao lado desse dourado algo tardio, plano, fatigado, de níquel ou cobre, como realidade ou utilidade, e tudo ficaria claro.
Sem dúvida, ela não nascia de dicionários nem salas de aula, não era inventada, derivada ou composta, era algo uno e redondo, perfeito, vinha do céu ou da terra como luz do sol ou uma visão de flores. Que bom, que felicidade, que consolo, haver palavras assim! Viver e pensar sem elas seria murcho e ermo, seria como viver sem pão nem vinho nem música nem riso.
Para esse lado, o natural e sensório, a minha relação com a palavra felicidade nunca se desenvolveu nem modificou, a palavra continua hoje tão breve e pensada e brilhante como sempre, eu a amo ainda como amei na meninice.
Mas o que esse símbolo mágico significa, o que se quer dizer com essa palavra tão simples quanto densa, sobre isso minhas opiniões e pensamentos mudaram muito, e só muito tarde chegaram a uma conclusão clara e determinada. Até bem depois da metade de minha vida eu a aceitava sem a examinar, certo de que na boca das pessoas felicidade era algo positivo e absolutamente valioso, mas no fundo meio banal.
Bom berço, boa educação, boa carreira, bom casamento, progresso na casa e na família, respeito das pessoas, bolsa cheia, baús repletos, pensava-se em tudo isso ao dizer “felicidade”, e eu fazia como todo mundo.
Parecia-me haver as pessoas felizes e as outras, assim como havia as sensatas e as outras. Também falávamos de felicidade na história universal, pensávamos conhecer povos felizes, épocas felizes. Mas nós mesmos vivíamos em meio a um período inusitadamente “feliz”, estávamos rodeados da felicidade de uma paz prolongada, de uma ampla liberdade, de um importante conforto e bem-estar, como num banho morno, e mesmo assim nem percebíamos isso, aquela felicidade era apenas natural, e nós jovens naquele momento aparentemente tão amável, confortável e pacífico éramos esnobes e céticos, coqueteávamos com a morte, com a degeneração, com a interessante anemia, falando da Florença do Quatrocento, da Atenas de Péricles e de outros tempos passados, como sendo “felizes”.
Sonhar com aqueles tempos florescentes foi-se perdendo aos poucos, líamos livros de história, líamos Schopenhauer, desconfiávamos do superlativo e das belas palavras, aprendemos a viver espiritualmente em um clima abafado e relativizado – e mesmo assim a palavra felicidade, onde quer que a encontrássemos inesperadamente, soava com o velho som dourado e cheio, continuava sendo pressentimento ou memória de coisas de altíssimo valor.
Talvez, pensávamos por vezes, pessoas simples e infantis podiam chamar de felicidade aqueles bens concretos da vida, mas nós pensávamos antes em algo como sabedoria, superioridade, tolerância, certeza da alma, tudo o que era belo e nos alegrava mas sem merecer um nome tão arcaico, pleno e profundo como felicidade.
No entanto minha vida pessoal chegara a um ponto em que eu sabia que não era feliz, e que também a busca da chamada felicidade não tinha ali espaço e sentido. Numa hora patética eu talvez designasse essa situação como Amor Fati mas no fundo nunca tive grande tendência para o pathos, a não ser em breves exceções e breves estados de excitação. E também o amor sem desejo e nada patético, à Schopenhauer, não era mais meu ideal absoluto, desde que eu aprendera aquele modo silencioso, inaparente, lacônico e sempre um pouquinho zombeteiro de sabedoria em cujo solo brotaram os relatos da vida dos mestres chineses e as parábolas do Tchuang Tsi.
Bem, não quero divagar. Pretendo dizer algo bastante definido. Primeiro, e para não perder o fio, tento formular com palavras abrangentes qual o conteúdo e significado que tem para mim hoje em dia a palavra felicidade. Hoje entendo por felicidade algo bem objetivo, isto é, a totalidade mesma. O ser atemporal, a eterna música do universo, isso a que outros chamaram harmonia das esferas ou sorriso de Deus.
Esse conceito, essa música infinita, essa eternidade de sons plenos e de brilho dourado é presente puro e perfeito, não conhece tempo, história, antes e depois. Eternamente brilha e ri o semblante do mundo, enquanto seres humanos, gerações, povos, reinos, surgem, florescem e novamente caem nas sombras e no nada. A vida produz uma música permanente, dança incessantemente sua ciranda, e o que a nós efêmeros, a nós ameaçados e caducos mesmo assim é dado em alegria, conforto e riso, é luz que vem de lá, é um olho cheio de brilho e um ouvido cheio de música.
Se alguma vez realmente houve aquelas pessoas lendariamente “felizes”, ou se aqueles felizardos louvados com inveja, os filhos do sol e os senhores do mundo foram iluminados pela grande luz apenas em horas ou momentos festivos e abençoados, não tiveram outra felicidade nem partilharam de nenhuma outra alegria.
Respirar num presente perfeito, cantar no coro das esferas, dançar na ciranda no mundo, rir com o eterno riso de Deus, é o que nos cabe como parte de felicidade. Muitos só têm isso uma vez, muito poucas vezes. Mas quem o viveu não foi feliz só por um instante, pois levou consigo algo desse brilho e melodia, dessa luz da alegria atemporal, todo o amor que foi trazido a este mundo pelos amantes, todo o consolo e alegria que foi trazido pelos artistas, e às vezes séculos depois continua brilhando como no primeiro dia, vem de lá.
No curso de uma vida inteira cheguei a esse significado abrangente, universal e sagrado da palavra felicidade, e talvez seja preciso dizer expressamente àqueles de meus leitores que ainda são meninos de escola, que não estou aqui fazendo filologia, mas contando um pedacinho da história de uma alma, e que estou muito longe de os estimular a também darem em sua linguagem oral e escrita o mesmo enorme significado à palavra felicidade. Mas para mim, em torno dessa sublime, dourada e simples palavra reuniu-se tudo o que desde a infância senti ouvindo-a.
A sensação era evidentemente mais forte na criança, a resposta de todos os sentidos a suas qualidades sensórias e à sua convocação eram mais intensas e mais ruidosas, mas se a palavra em si não fosse tão profunda, tão arcaica e tão universal, minha ideia do eterno presente, do "rastro dourado" (na boca de Goldmund) e do riso dos imortais (em O lobo da estepe) não se teria cristalizado em torno dessa palavra.
Quando pessoas que envelheceram tentam recordar quantas vezes e com que intensidade sentiram felicidade, procuram primeiramente em sua infância, e isso é correto, pois para vivenciar felicidade é preciso sobretudo independência do tempo, e com isso do medo e da esperança, e em geral com os anos as pessoas perdem essa capacidade. Mesmo eu, quando tento recordar momentos em que participei do brilho do eterno presente, do sorriso de Deus, volto sempre à infância e encontro lá as mais frequentes e valiosas experiências desse tipo. E verdade que os tempos alegres da adolescência eram mais coloridos, festivos e agitados, o espírito participava mais deles do que nos anos de infância.
Mas olhando melhor e melhor, ali havia mais divertimento e graça do que realmente felicidade. A gente era divertida, engraçada, espirituosa, a gente fazia muitas boas brincadeiras. Lembro de um momento no grupo de meus colegas no florido tempo da juventude: um inocente perguntou, na conversa, o que era afinal um riso homérico, e eu respondi com uma risada ritmada, que se escandia precisamente como um hexâmetro.
Todos riram alto, brindaram tocando os copos, mas momentos desses não se sustentam quando lembrados mais tarde. Tudo aquilo era bonito, foi divertido, saboroso, mas não era felicidade.
Depois de analisar por algum tempo, a felicidade parecia ter sido experimentada só na infância, em horas ou momentos difíceis de reviver, pois também ali no reino da infância o brilho nem sempre parecia legítimo quando bem examinado, o ouro nem sempre tão puro. Vendo bem, restavam apenas poucas vivências, e também elas não eram quadros que se pudessem pintar, histórias que se pudessem contar, esquivavam-se agilmente quando questionados.
Se uma lembrança dessas se apresentava, parecia no começo tratar-se de semanas ou dias ou pelo menos um dia, um Natal quem sabe, um aniversário ou um dia de férias. Mas para reviver na memória um dia da infância seriam precisas mil imagens, e para nenhum único dia, nem mesmo para meio dia, a memória traria de volta quantidade suficiente de imagens.
Quer se tratasse de experiências de dias, horas ou minutos, vivi a felicidade algumas vezes, por instantes estive próximo dela. Mas daqueles encontros felizes do começo da vida, sempre que os convoquei, interroguei e examinei, um especialmente persistiu. Foi nos meus tempos de menino de escola, e o singular, legítimo, primitivo e mítico nessa experiência, o estado de ser um com o mundo num riso silencioso, a total liberdade em relação a tempo, esperança e temor, o absoluto presente não pode ter durado muito, talvez não mais do que alguns minutos.
Certa manhã – eu era um menino agitado, de uns dez anos –, acordei com uma sensação inusitada, profunda e doce, de alegria e bem-estar, que me iluminava inteiro como um sol interior, como se agora mesmo, naquele instante do despertar de um bom sono de menino, algo de maravilhoso, de novo me tivesse acontecido, como se todo o meu pequeno-grande mundo de menino estivesse numa situação nova e mais elevada, tivesse entrado em outra luz e clima, como se só agora, cedo de manhã, toda a bela vida tivesse adquirido todo o seu valor e sentido. Eu nada sábia de ontem nem de amanhã, estava rodeado e inundado daquele hoje feliz. Aquilo fazia bem, e meus sentidos e minha alma o saborearam sem curiosidade nem justificação. Aquilo me invadia e tinha um gosto magnífico.
Era de manhã, pela janela alta eu vi sobre a longa cumeeira do telhado vizinho o céu alegre de um azul-claro puro, também ele parecia feliz como se pretendesse coisas especiais e tivesse posto para essa ocasião sua melhor veste. Não se via mais do mundo ali da minha cama, só aquele belo céu e o longo pedaço de telhado da casa vizinha, mas também esse telhado, esse telhado monótono e desinteressante de telhas castanho-avermelhadas parecia rir, sobre uma parede oblíqua íngreme e sombreada perpassava um leve jogo de cores, e uma única telha de vidro azulada no meio das de cor vermelha parecia viva, parecia alegremente desejosa de espelhar algo daquele céu matinal de brilho leve e permanente.
O céu, a quina um tanto grosseira da cumeeira do telhado, o exército uniforme das telhas marrons e o azul translúcido da única telha de vidro pareciam harmonizar-se de maneira bela e alegre, nada queriam, visivelmente, senão naquela hora matinal especial rir umas com as outras, e querer-se bem.
Azul-celeste, marrom-telha e azul vítreo pertenciam uns aos outros, brincavam entre si, sentiam-se bem, e era bom e fazia bem vê-los assim, participar do seu brinquedo, sentir-se inundado, como eles, pelo mesmo brilho da manhã e pela mesma sensação de bem-estar.
Assim, no começo da manhã, fiquei deitado saboreando junto com tudo isso a calma sensação do sono que recém-acabara, uma bela eternidade em minha cama, e se saboreei felicidade igual ou semelhante mais vezes em minha vida, nenhuma poderia ser mais profunda e mais real: o mundo estava em ordem.
E se essa felicidade durou cem segundos ou dez minutos, era tão atemporal que se parecia tão perfeitamente com qualquer outra felicidade legítima quanto uma borboleta azul se parece com outra. Aquilo foi transitório, foi recoberto pelo tempo, mas era profundo e eterno o bastante para depois de mais de sessenta anos ainda me chamar e atrair, e eu, com olhos cansados e dedos doloridos, ainda tenho de me esforçar para o invocar e lhe sorrir, e o descrever.
Essa felicidade não consistia em nada além da harmonia de algumas poucas coisas ao meu redor com o meu próprio ser, um bem-estar sem desejos, que não exigia nenhuma mudança nem intensificação.
Ainda estava tudo quieto na casa, e também lá fora não se ouvia um som. Se não fosse esse silêncio, provavelmente a lembrança dos deveres cotidianos, da necessidade de levantar-me e ir à escola, teria perturbado meu bem-estar. Mas obviamente não era nem dia nem noite, era a doce luz e o azul risonho, sem passos de criadas nas lajes do pátio nem porta rangendo, nem padeiro subindo as escadas. Esse momento matinal estava fora do tempo, não levava a nada, não indicava nada iminente, bastava-se a si mesmo, e como me incluísse inteiramente, para mim não havia dia nem pensamento de levantar ou ir à escola, nem tarefas mal cumpridas nem vocábulos mal aprendidos, café da manhã apressado na arejada sala de jantar.
A eternidade da felicidade dessa vez foi desfeita pela intensificação do belo, por um mais e demais de alegria. Enquanto eu estava ali deitado sem me mover, e o silencioso e claro universo matinal penetrava em mim e me absorvia, algo inusitado, algo brilhante e excessivamente claro e dourado e triunfante varou o silêncio, cheio de uma atrevida alegria, pleno de uma doçura sedutora e inquietante: o som de uma trombeta.
E enquanto eu, só agora plenamente desperto, me sentei na cama afastando os cobertores, o som mostrou ser de duas vozes, de mais vozes ainda: era a banda da cidade que marchava pelas ruelas, um acontecimento muito raro e excitante, cheio de uma festividade barulhenta que fez meu coração de criança rir e soluçar a um tempo, como se toda a felicidade, todo o encanto daquela hora sublime tivesse se diluído naqueles sons agridoces e excitantes, e agora se derramasse, despertado e retornado ao temporal e ao transitório.
Saí da cama num segundo, tremendo de alegria solene, corri atravessando a porta para o quarto ao lado, de cuja janela se via a rua. Num tumulto de encanto, curiosidade e desejo de participar, debrucei-me numa janela aberta, escutei feliz os sons altivos da música que aumentavam e vi e ouvi as casas vizinhas e as ruas acordando, tomando vida e enchendo-se de rostos, figuras e vozes – e no mesmo segundo eu soube também tudo aquilo que esquecera inteiramente naquele momento de bem-estar entre sono e dia. Eu soube que com efeito naquele dia não haveria aulas, era um feriado importante, penso que era aniversário do rei, haveria desfiles, bandeiras, música e uma alegria inusitada.
E sabendo disso eu tinha voltado, estava novamente submetido as leis que regem o cotidiano, e ainda que não fosse um cotidiano, mas um dia de festa para o qual eu fora despertado pelos sons de metais, o verdadeiro e belo e divino naquele encanto matinal passara, e sobre aquele pequeno milagre suave voltaram a se fechar as ondas do tempo, do mundo, da banalidade.
(1949)

Nota:

(*) Referência a glück, palavra alemã para felicidade, que tem apenas uma sílaba. (N. do E.)

Referência:

HESSE, Hermann. Felicidade. In: __________. Felicidade. Tradução de Lya Luft. Prefácio de Marco Lucchesi. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.  47-60.

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