Eis aqui um excerto
daquela que é a segunda conferência do Dr. Cláudio – professor da casa e
presidente efetivo do “Grêmio Literário Amor ao Saber” –, sobre a “Arte em
geral”, adjetivada pelo narrador de “O Ateneu” – vale dizer, o “Sérgio” adulto,
sobre cujas memórias escolares se debruça para contar-nos as peripécias – como
“subversiva”, embora não à maneira da primeira conferência, crítica em relação
às fragilidades da Literatura no Brasil.
Consigne-se que a
obra “O Ateneu”, de Raul Pompeia (1863-1895), configura um pungente retrato
naturalista de uma sociedade em decadência, a retratar, no âmbito miniaturizado
de uma instituição de ensino, as mais amplas patologias da então sociedade
aristocrática monárquica pátria, não sem motivo incendiada deliberadamente ao
seu final pelo autor fluminense, como que a metaforizar o seu desejo de ver
derrotado o contexto em que inserta – o que, de fato, acabou por suceder, com o
advento da República, em fins do século XIX: tenha-se em conta, a propósito,
que “O Ateneu” veio à luz em 1888 – ano da abolição da escravatura no país –,
nas páginas da “Gazeta de Notícias”, e, logo no ano subsequente, declarou-se a Proclamação da República.
O fragmento que a
seguir se transcreve lança luzes sobre a provável visão do autor acerca da missão e da
natureza da arte, assim como sobre a sua relação com a moral e a sociedade onde
aflora: a arte lhe parece ingênita, inata, espontânea, por conseguinte, uma expressão
natural da humanidade a veicular certa figuração estética e beleza que são um
fim em si mesmas, explico-me melhor, sem um necessário propósito pragmático ou utilitário,
cingido no mais das vezes por arbitrárias valorações convencionais.
J.A.R. – H.C.
Raul Pompeia
(1863-1895)
A Missão da Arte
Qual a missão da arte?
Originaria da propensão erótica fora do amor, a arte é inútil, – inútil como o
esplendor corado das pétalas sobre a fecundidade do ovário. Qual a missão das
pétalas coradas? De que nos serve a primavera ser verde? As aves cantam. Que se
aproveita do cantar das aves? A arte é uma consequência e não um preparativo. Nasce
do entusiasmo da vida, do vigor do sentimento, e o atesta. Agrada sempre,
porque o entusiasmo é contagioso como o incêndio. A alma do poeta invade-nos. A
poesia é a interpretação de sentimentos nossos. Não tem por fim agradar.
E, depois, reclamar
títulos de utilidade às divagações graciosas de uma energia da alma, que
significa em primeira manifestação a própria perpetuidade da espécie?!
Além de inútil, a
arte é imoral. A moral é o sistema artístico da harmonia transplantado para as
relações de coletividade. Arte sui generis. Se é possível eficazmente o
regime social das simetrias da justiça e da fraternidade, o futuro há de
provar. Em todo caso é arte diferente e as artes não se combinam senão em
produtos falsos, de convenção.
Poema
intencionalmente moral é o mesmo que estátua polícroma ou pintura em relevo.
Apenas uma coisa possível, nada mais; há também quem faça flores, com asas de
barata e pernas.
A verdadeira arte, a arte
natural, não conhece moralidade. Existe para o indivíduo sem atender à
existência de outro indivíduo. Pode ser obscena na opinião da moralidade: Leda;
pode ser cruel: Roma em chamas, que espetáculo!
Basta que seja
artística.
Cruel, obscena,
egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade
humana – acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam,
acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase.
E desdenha dos
séculos efêmeros.
A Reunião
(Marie Bashkirtseff:
pintora ucraniana)
Referência:
POMPEIA, Raul. A
missão da arte. In: __________. O Ateneu (Seção 6). São Paulo, SP: Moderna,
1983. p. 121-122.
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