Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 30 de novembro de 2024

Kabir - Há uma Lua em Meu Corpo

Kabir sugere, por meio destes versos, que a divindade e a luz cósmica estão intrinsecamente conectadas ao seu ser, muito embora, para os comuns dos mortais, haja certa incapacidade para reconhecê-las, devido à falta de percepção para tanto, diria melhor, às limitações sensorial e espiritual a imporem óbices a quaisquer experiências de ordem mística ou transcendental.

 

Para o falante, enquanto o ser humano estiver obsessionado com o próprio ego e suas posses pessoais, suas obras acabam por consumar-se sob a carência de significados reais, tudo porque, ao nos atermos simplesmente à faina do trabalho, não prestamos atenção ao seu propósito maior, que é alcançar certa compreensão espiritual, fazendo com que nossas obras se deixem atrair pelas linhas de força dos fanais do amor.

 

Não deixa de ser paradoxal que busquemos fora de nós mesmos aquilo que já possuímos no plano interno, que seja no plano externo o nosso irrestrito empenho por prazer e felicidade, ignorando toda a riqueza, beleza e verdade que jazem em nossas têmperas, no aguardo de plena manifestação.

 

J.A.R. – H.C.

 

Kabir

(1440-1518)

 

There is a Moon in My Body

 

There’s a moon in my body, but can’t see it!

A moon and a sun.

A drum never touched by hands, beating,

and I can’t hear it!

 

As long as a human being worries about when

he will die, and what he has that is his,

all of his works are zero.

When affection for the l-creature and what it owns

is dead, then the work of the Teacher is over.

 

The purpose of labor is to learn; when you know it,

the labor is over.

The apple blossom exists to create fruit; when that

comes, the petals fall.

 

The musk is inside the deer, but the deer does not

look for it:

It wanders around looking for grass.

 

Nu masculino no estúdio ‘54 Moon’

(Martin M.: artista letão)

 

Há uma Lua em Meu Corpo

 

Há uma lua em meu corpo, mas não consigo vê-la!

Uma lua e um sol.

E um tambor jamais tocado pelas mãos, que ressoa

e não consigo ouvi-lo.

 

Enquanto o ser humano se preocupar com o momento

de sua morte e com o que possui, todas as suas obras

serão nulas.

Quando a afeição pela criatura representada pelo ego

e pelo que ela possui estiver morta, então

o trabalho do Mestre estará concluído.

 

O objetivo do trabalho é aprender; quando o souberes,

o trabalho chega a termo.

A flor da macieira existe para dar fruto; quando

este aparece, as suas pétalas caem.

 

O almíscar está no cervo, mas o cervo não o procura

dentro de si:

Ele vagueia em busca da relva.

 

Referência:

 

KABIR. There is a moon in my body. Translation from Hindi to English by Robert Bly. In: MAHAPATRA, Sitakant (Comp.). A child even in arms of stone. 1st publ. New Delhi, IN: Sahitya Akademi, 2000. p. 26.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Louis Golding - Eu

Renunciando ao ego, o falante deste poema de Golding pretende renovar-se, desfazer-se de traços negativos ou não desejados, liberando-se das limitações e restrições vinculadas às ideias de identidade, de sexo ou mesmo daquelas que se autoimpõe por força de condicionamentos mentais, para então acercar-se da essência primordial da própria existência.

 

Trata-se, em última instância, do objetivo básico de todo ser humano, a saber, evitar o sofrimento e buscar a felicidade, escapando às limitações físicas, para transcender a um estado espiritual mais elevado – não refém de paixões, de desregramentos, de quimeras irrealizáveis –, e quiçá em fina sintonia com o cosmos ou o divino.

 

J.A.R. – H.C.

 

Louis Golding

(1895-1958)

 

I

 

I shall slough my self as a snake its skin,

My white spots of virtue, my black spots of sin.

I shall abandon my sex, my brain,

My scheming for pleasure, escaping from pain.

I shall dig roots deep down and be

A weed or a reed, a flower, a tree.

I shall lose body and miry feet,

Float with the clouds and sway with the wheat.

I am a fool and foolisher than

Anything else that is not a man.

For of all the things that I see or feel,

The I-that-is-I is far the least real.

And only when I shall learn at the last

That a stream-bed pebble is far more vast

In the scale of Mind and its secret schemes

Than all my passion and blunders and dreams;

Then only that I that shall not be I

Shall play due part beneath sun and sky,

Ranked below sparrow, just above sod,

I shall take my place in the Self of God.

 

Arca

(Nigel Cooke: pintor inglês)

 

Eu

 

Descartar-me-ei de mim mesmo como

uma cobra de sua pele,

Minhas brancas manchas do acerto,

minhas negras manchas do erro.

Abandonarei o meu sexo, o meu cérebro,

Meu plano para o prazer, escapando ao que fere.

Cavarei raízes bem fundas e serei

Um joio ou junco, uma flor, uma árvore.

Perderei corpo e pés lodosos,

Flutuarei com as nuvens e oscilarei com o trigo.

Eu sou um tolo e mais tolo que

Tudo mais que não for um homem.

De todas as coisas que vejo ou que sinto,

O eu-que-sou-eu é de longe o real mais ínfimo.

E somente quando finalmente aprender

Que um leito de arroio é muito mais vasto

Na escala da Mente e de seus secretos planos

Que toda minha paixão e tolices e sonhos;

Será então somente que eu que não serei eu

Desempenharei o papel certo sob o sol e o céu,

E colocado logo abaixo do pardal,

logo acima da turfa,

Tomarei meu lugar na Interioridade de Deus.

 

Referências:

 

Em Inglês

 

GOLDING, Louis. I. In: __________. Sorrow of war: poems. 1st publ. London, EN: Methuen & Co. Ltd., 1919. p. 66. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 nov. 2024.

 

Em Português

 

GOLDING, Louis. Eu. Tradução de Zulmira Ribeiro Tavares. In: GUINSBURG, J.; TAVARES, Zulmira Ribeiro (Orgs.). Quatro mil anos de poesia. Desenhos de Paulina Rabinovich. Vários tradutores. São Paulo, SP: Perspectiva, 1969. p. 406. (Coleção “Judaica”; v. 12)

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Lélia Coelho Frota - Aquerôntico

O adjetivo conferido por Lélia a este poema – “Aquerôntico” – diz muito sobre o que se passa em seus versos, com o rio da mitologia grega a simbolizar a fronteira entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos, flúmen delicado por onde, durante as noites, os mortos regressam numa frágil “barca de papel” para ver o que se passa conosco.

 

Presença constante em nossas vidas, inclusive quando não estamos conscientes dela, a morte sempre está à espreita: os que já se encontram na outra margem aceitam-na com naturalidade e ficam a nos observar com curiosidade e indulgência, embora a certa distância, ilustrados que estão por uma compreensão mais profunda da humana existência, da qual parecem nos querer dar conta durante os enlevos do sono.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lélia Coelho Frota

(1938-2010)

 

Aquerôntico

 

É de noite que os mortos voltam

em sua barca de papel

a roçar a porta do sono

em que inermes escurecemos

mais um dia – pulmão de chama

contraindo a luz da manhã!

 

E de noite, pela amurada

que vêm se debruçar conosco

e indulgem – apenas sorriem

sem qualquer resguardo, sem ênfase –

em ir e vir, em ter partido.

Impressões de viagem? Alheias

como a do perfil de uma dracma.

 

Remiram-nos maliciosos

pensos de ternura se quedam

em sua fosca primavera,

atrás de embaciados acenos,

pacientes, à nossa espera.

 

A Barca do Aqueronte

(Félix Resurrección Hidalgo: pintor filipino)

 

Referência:

 

FROTA, Lélia Coelho. Aquerôntico. In: __________. Poesia reunida: 1956-2006. Rio de Janeiro, RJ: Bem-Te-Vi, 2013. p. 256.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Charles Tomlinson - Se Bach Houvesse Sido um Apicultor

O poeta inglês homenageia o famoso compositor alemão, aludindo à sua genialidade musical, à sua habilidade em compor peças para dar alento, refrigério e beleza à vida, equiparando-as ao trabalho laborioso e harmonioso de um apicultor que cuida das abelhas em suas colmeias.

 

Bach, se apicultor fosse, teria enxergado uma profusão de notas musicais no zumbido e no movimento dos enxames: cada nota se pareceria com uma abelha regressando à colmeia específica a que pertence, mantendo-se suspensa no ar para preencher as células com a doçura do mel em tom de “dó maior”.

 

Com efeito, precisão e ordem caracterizam a música de Bach, parâmetro que decerto levou o poeta a metaforizá-la por meio da estrutura e organização de um alveário, ao redor do qual o movimento das abelhas se assemelharia a uma dança, e o ar que a tudo envolve, impregnado do aroma das flores, se converteria num “perfumado jardim”.

 

Sob tal imagística, logo se deduz que Tomlinson conjectura que o compositor poderia ter facilmente apreendido o lugar da música na cultura como o do âmbito em que as almas das pessoas seriam nutridas, dela obtendo consolo e alívio às suas inquietudes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Charles Tomlinson

(1927-2015)

 

If Bach Had Been a Beekeeper

 

for Arvo Pärt

 

If Bach had been a beekeeper

he would have heard

all those notes

suspended above one another

in the air of his ear

as the differentiated swarm returning

to the exact hive

and place in the hive,

topping up the cells

with the honey of C major,

food for the listening generations,

key to their comfort

and solace of their distress

as they return and return

to those counterpointed levels

of hovering wings where

movement is dance

and the air itself

a scented garden

 

Música de Câmara

(Anthony Armstrong: artista afro-americano)

 

Se Bach Houvesse Sido um Apicultor

 

para Arvo Pärt

 

Se Bach houvesse sido um apicultor,

teria escutado

todas aquelas notas

suspensas umas sobre as outras,

no ar à volta de seus ouvidos,

como o diferenciado enxame retornando

à exata colmeia

e, nela, ao seu distintivo lugar,

preenchendo as células

com o mel do Dó maior,

alimento para a geração de ouvintes,

chave para o seu conforto

e consolo para a sua angústia,

enquanto regressam e regressam

àqueles níveis contraponteados

de asas drapejantes, onde

o movimento é dança

e o próprio ar

um perfumado jardim

 

Referência:

 

TOMLINSON, Charles. If Bach had been a beekeeper. n: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best ‎‎poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 276.