Preliminarmente, uma
observação: reconheço ser uma afronta transcrever apenas uma das sete seções –
exatamente a última – deste magistral poema do autor lusitano. Mas espero ter a
compreensão do internauta, pois o poema como um todo é extremamente longo, como
se poderá estimar pela própria extensão deste excerto convenientemente
selecionado.
O ponto em que o
conteúdo do poema se revela ao autor mais parece um estado de suprema epifania,
maravilhosamente moldável, de um rasgo, em libérrimos filões metapoéticos, de
onde a poesia flui sem contenções até a “parte mais límpida da vida”. Frente a
tamanha primavera em sagração, por que não se repetir a máxima do príncipe Míchkin:
“A beleza há de salvar o mundo.”?!
J.A.R. – H.C.
Herberto Helder
(1930-2015)
O poema
VII
A manhã começa a
bater no meu poema.
As manhãs, os
martelos velozes, as grandes flores
líricas.
Muita coisa começa a
bater contra os muros do meu poema.
Escuto um pouco a
medo o ruído das gárgulas,
o rodopio das
rosáceas do meu
poema batido pela
revelação das coisas.
Os finos ramos da
cabeça cantam mexidos
pelo sangue.
Talvez eu enlouqueça
à beira desta treva
rapidamente
transfigurada.
Batem nas portas das
palavras,
sobem as escadas
desta intimidade.
É como uma casa, é
como os pés e as mãos
das pessoas invasoras
e quentes.
Estou deitado no meu
poema. Estou universalmente só,
deitado de costas,
com o nariz que aspira,
a boca que emudece,
o sexo negro no seu
quieto pensamento.
Batem, sobem, abrem,
fecham,
gritam à volta da
minha carne que é a complicada carne
do poema.
Uma inspiração fende
lírios na minha testa,
fende-os ao meio
como os raios fendem
as direitas taças de pedra.
Eu sorrio e levo pela
mão essa criança poderosa,
uma visita do sangue
cheio de luzes interiores.
Acompanho, como
tocando uma espécie de paisagem
levitante,
as palavras pessoas
caudas luminosas ascéticas aldeias.
É a madrugada e a
noite que rolam sobre os telhados
do poema. É Deus que
rola e a morte
e a vida violenta. E
o meu coração é um castiçal
à beira
do povo que até mim
separa os espinhos das formas
e traz sua pureza
aguda e legítima.
– Trazem liras nas
mãos, trazem nas mãos brutais
pequenos cravos de
ouro ou peixes delicados
de música fria.
– Eu enlouqueço com a
doçura dos meses vagarosos.
O poema dói-me,
faz-me.
O povo traz coisas
para a sua casa
do meu poema.
Eu acordo e grito,
bato com os martelos
dos dias da minha
morte
a matéria secreta de
que é feito o poema.
– A manhã começa a
colocar o poema na parte
mais límpida da vida.
E o povo canta-o
enquanto crescem os
campos levantados
ao cume das seivas.
Amanhã começa a
dispersar o poema na luz incontida
do mundo.
Em: “A colher na
boca” (1961)
Ave do Paraíso
(Se Jong Cho: artista
sul-coreana)
Referência:
HELDER, Herberto. O
poema: VII. In: __________. Poemas completos. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ:
Tinta-da-china Brasil, 2016. p. 39-40. (Coleção ‘Grandes Escritores
Portugueses’)
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