Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Herberto Helder - O poema: VII

Preliminarmente, uma observação: reconheço ser uma afronta transcrever apenas uma das sete seções – exatamente a última – deste magistral poema do autor lusitano. Mas espero ter a compreensão do internauta, pois o poema como um todo é extremamente longo, como se poderá estimar pela própria extensão deste excerto convenientemente selecionado.

 

O ponto em que o conteúdo do poema se revela ao autor mais parece um estado de suprema epifania, maravilhosamente moldável, de um rasgo, em libérrimos filões metapoéticos, de onde a poesia flui sem contenções até a “parte mais límpida da vida”. Frente a tamanha primavera em sagração, por que não se repetir a máxima do príncipe Míchkin: “A beleza há de salvar o mundo.”?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Herberto Helder

(1930-2015)

 

O poema

 

VII

 

A manhã começa a bater no meu poema.

As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores

líricas.

Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.

Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,

o rodopio das rosáceas do meu

poema batido pela revelação das coisas.

Os finos ramos da cabeça cantam mexidos

pelo sangue.

Talvez eu enlouqueça à beira desta treva

rapidamente transfigurada.

Batem nas portas das palavras,

sobem as escadas desta intimidade.

É como uma casa, é como os pés e as mãos

das pessoas invasoras e quentes.

 

Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,

deitado de costas, com o nariz que aspira,

a boca que emudece,

o sexo negro no seu quieto pensamento.

Batem, sobem, abrem, fecham,

gritam à volta da minha carne que é a complicada carne

do poema.

 

Uma inspiração fende lírios na minha testa,

fende-os ao meio

como os raios fendem as direitas taças de pedra.

Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,

uma visita do sangue cheio de luzes interiores.

Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem

levitante,

as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

 

É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados

do poema. É Deus que rola e a morte

e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal

à beira

do povo que até mim separa os espinhos das formas

e traz sua pureza aguda e legítima.

– Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais

pequenos cravos de ouro ou peixes delicados

de música fria.

 

– Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

 

O poema dói-me, faz-me.

O povo traz coisas para a sua casa

do meu poema.

Eu acordo e grito, bato com os martelos

dos dias da minha morte

a matéria secreta de que é feito o poema.

 

– A manhã começa a colocar o poema na parte

mais límpida da vida. E o povo canta-o

enquanto crescem os campos levantados

ao cume das seivas.

Amanhã começa a dispersar o poema na luz incontida

do mundo.

 

Em: “A colher na boca” (1961)

 

Ave do Paraíso

(Se Jong Cho: artista sul-coreana)

 

Referência:

 

HELDER, Herberto. O poema: VII. In: __________. Poemas completos. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Tinta-da-china Brasil, 2016. p. 39-40. (Coleção ‘Grandes Escritores Portugueses’)

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