A história humana assemelha-se
a um ‘script’ dos que resultaram petrificados ou engolidos por monstros, a vida
como “pura fantasmagoria” a dar razões a tal perspectiva: o falante chega mesmo
a reconhecer que, ele próprio, muitas vezes, tomou parte na procissão, “deslumbrante
mas mortal”, dos que transigiriam em se enredar “bovinamente” pela vida.
A vida, olhada de
revés, “deixa de ser no instante mesmo em que seria”, e, sob essa condição
inglória, servimos, enquanto humanos, de alimento ao lendário Minotauro: ficar olhando
saudosamente para trás ou caminhar para a frente com “espírito de rebanho” são
duas faces da mesma moeda, capazes de transformar a existência num experimento meio sem
sentido.
J.A.R. – H.C.
Bruno Tolentino
(1940-2007)
Como a mulher de Lot
Como a mulher de Lot,
que saudosa (1)
voltou-se para trás e
virou sal,
eu já fui essa
estátua curiosa;
mas virei monstro e
fui ficando igual
ao Minotauro nessa
sinuosa
extensão que é a
vida: de portal
em portal vai
passando uma enganosa
procissão,
deslumbrante mas mortal,
ou melhor, moritura,
porque deixa
de ser no instante
mesmo em que seria.
A vida é pura
fantasmagoria,
o monstro tem razão,
que não se queixa
nem olha para trás:
baixa a cabeça,
bovinamente aceita
que escureça. (2)
A mulher de Lot
(Laszlo Mathe: pintor
romeno)
Notas dos
Organizadores:
(1). Lot ou Ló,
personagem bíblico, sobrinho de Abraão. Ló e sua família são avisados por um
anjo que precisam fugir da cidade de Sodoma, que, assim como Gomorra, será
castigada por Deus; o anjo recomenda que eles não olhem para trás. A esposa de
Ló, porém, volta o olhar para a cidade e é transformada imediatamente em uma
estátua de sal. Cf. Gen. 19: 31-38.
(2). Imagem
recorrente em outras obras de Bruno Tolentino, em A imitação do amanhecer e
no último soneto de “A imitação da música”, de O mundo como ideia.
Referência:
TOLENTINO, Bruno.
Como a mulher de Lot. In: __________. Balada do cárcere. Edição
comentada. 1. ed. Notas e organização de Juliana P. Perez, Jessé de Almeida
Primo, Martim Vasques da Cunha, Guilherme Malzoni Rabello e Renato José de
Moraes. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2016. p. 170.
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