Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Bruno Tolentino - Como a mulher de Lot

A história humana assemelha-se a um ‘script’ dos que resultaram petrificados ou engolidos por monstros, a vida como “pura fantasmagoria” a dar razões a tal perspectiva: o falante chega mesmo a reconhecer que, ele próprio, muitas vezes, tomou parte na procissão, “deslumbrante mas mortal”, dos que transigiriam em se enredar “bovinamente” pela vida.

 

A vida, olhada de revés, “deixa de ser no instante mesmo em que seria”, e, sob essa condição inglória, servimos, enquanto humanos, de alimento ao lendário Minotauro: ficar olhando saudosamente para trás ou caminhar para a frente com “espírito de rebanho” são duas faces da mesma moeda, capazes de transformar a existência num experimento meio sem sentido.

 

J.A.R. – H.C.

 

Bruno Tolentino

(1940-2007)

 

Como a mulher de Lot

 

Como a mulher de Lot, que saudosa (1)

voltou-se para trás e virou sal,

eu já fui essa estátua curiosa;

mas virei monstro e fui ficando igual

 

ao Minotauro nessa sinuosa

extensão que é a vida: de portal

em portal vai passando uma enganosa

procissão, deslumbrante mas mortal,

 

ou melhor, moritura, porque deixa

de ser no instante mesmo em que seria.

A vida é pura fantasmagoria,

 

o monstro tem razão, que não se queixa

nem olha para trás: baixa a cabeça,

bovinamente aceita que escureça. (2)

 

A mulher de Lot

(Laszlo Mathe: pintor romeno)

 

Notas dos Organizadores:

 

(1). Lot ou Ló, personagem bíblico, sobrinho de Abraão. Ló e sua família são avisados por um anjo que precisam fugir da cidade de Sodoma, que, assim como Gomorra, será castigada por Deus; o anjo recomenda que eles não olhem para trás. A esposa de Ló, porém, volta o olhar para a cidade e é transformada imediatamente em uma estátua de sal. Cf. Gen. 19: 31-38.

 

(2). Imagem recorrente em outras obras de Bruno Tolentino, em A imitação do amanhecer e no último soneto de “A imitação da música”, de O mundo como ideia.

 

Referência:

 

TOLENTINO, Bruno. Como a mulher de Lot. In: __________. Balada do cárcere. Edição comentada. 1. ed. Notas e organização de Juliana P. Perez, Jessé de Almeida Primo, Martim Vasques da Cunha, Guilherme Malzoni Rabello e Renato José de Moraes. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2016. p. 170.

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