Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de março de 2025

T. S. Eliot - Spleen

Entre a conformidade social e a simulação performativa, o falante, num discurso sombrio, permeado por manifesto tom irônico, retrata um domingo monótono e tedioso, em linha com o que lhe vai em mente, dada a sua existência presumivelmente sem sentido ou, porventura, a sua insatisfação com a vida.

 

Publicado postumamente, este poema de Eliot revela a incapacidade do ente lírico em encontrar significado ou em escapar dessa fatuidade social, dessa ausência de espontaneidade na rotina mundana. Até mesmo a vida se lhe apresenta à espera junto “à porta do Absoluto”, o que sugere estar “ansiosa” para chegar a termo, muito embora a morte também lhe pareça fastidiosa e convencional.

 

O final aberto do poema deixa o leitor com uma sensação de desencanto com a trama lânguida e insípida da realidade quotidiana, em face da apatia e da desilusão que daí decorre, por não se lograr alcançar algum tipo de teleologia mais cabal que dê conta das razões pelas quais passamos pelo que passamos, dos motivos pelos quais os dias cumulam-se nessa espécie de enredo agônico.

 

J.A.R. – H.C.

 

T. S. Eliot

(1888-1965)

 

Spleen

 

Sunday: this satisfied procession

Of definite Sunday faces;

Bonnets, silk hats, and conscious graces

In repetition that displaces

Your mental self-possession

By this unwarranted digression.

 

Evening, lights, and tea!

Children and cats in the alley;

Dejection unable to rally

Against this dull conspiracy.

 

And Life, a little bald and gray,

Languid, fastidious, and bland,

Waits, hat and gloves in hand,

Punctilious of tie and suit

(Somewhat impatient of delay)

On the doorstep of the Absolute.

 

In: “Poems Written in Early Youth” (1967)

 

Home com chapéu, luvas e bengala

(Nathan Oliveira: artista norte-americano)

 

Spleen (*)

 

Domingo: este cortejo satisfeito

De nítidas faces dominicais;

Gorros, chapéus de seda, conscientes

E repetidos encantos que substituem

Nosso autodomínio mental

Por essa injustificada digressão.

 

Tarde, luzes – e chá!

Crianças e gatos na alameda;

Tristeza incapaz de reagrupar-se

Contra essa estúpida conspiração.

 

E a vida, um pouco calva e grisalha,

Lânguida, branda e fastidiosa,

Espera, com luvas e chapéu na mão,

Meticulosa de terno e gravata

(Algo impaciente pelo atraso),

Na soleira do Absoluto.

 

Em: “Poemas Escritos na Primeira juventude” (1967)

 

Nota:

 

(*). Por ser uma palavra com substrato já suficientemente incorporado à Literatura – desde que foi cunhada pelo poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), em meados do século XIX –, Ivan Junqueira deixou-a de traduzir: descreve ela um estado de melancolia, tédio e, quiçá, insatisfação com a vida, carente de uma causa bem definida.

 

Referência:

 

ELIOT, T. S. Spleen / Spleen. Tradução de Ivan Junqueira. In: __________. Obra completa. Vol. I: Poesia. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição bilíngue: inglês x português. São Paulo, SP: Arx, 2004. Em inglês: p. 494; em português: p. 495.

domingo, 30 de março de 2025

Rita Dove - O Velório

Em torno do tema do luto, Dove explora a dor profunda que a ausência de um ente querido suscita em quem lhe conheceu em vida, ou ainda, o vazio emocional que nem mesmo a casa cheia de gente é capaz de preencher: as imagens dos cômodos “ávidos” de serem ocupados, de objetos que antes eram utilizados pelo finado, são como que o espelho tangível da sensação de desorientação e de desconforto experimentado pela voz lírica.

 

Enquanto os outros permanecem no andar de baixo da casa, tentando preencher o silêncio com lágrimas, a falante, deitando-se no leito de morte, retira-se para dentro de si mesma – qual feto num útero –, regressando a um estado de inocência e de vulnerabilidade, envolta pela comoção da partida do morto, como se estivesse a palmilhar toda a trilha da ausência que este deixou para trás.

 

Dormir e sonhar tornam-se os seus únicos refúgios, suas únicas rotas de fuga – ainda que algo involuntárias –, a despeito de que, mesmo sob tais domínios, ou melhor, nos recessos do sono, a ausência de quem partiu não lhe deixa de assombrar o espírito.

 

J.A.R. – H.C.

 

Rita Dove

(n. 1952)

 

The Wake

 

Your absence distributed itself

like an invitation.

Friends and relatives

kept coming, trying

to fill up the house.

But the rooms still gaped –

the green hanger swang empty, and

the head of the table

demanded a plate.

 

When I sat down in the armchair

your warm breath fell

over my shoulder.

When I climbed to bed I walked

through your blind departure.

The others stayed downstairs,

trying to cover

the silence with weeping.

 

When I lay down between the sheets

I lay down in the cool waters

of my own womb

and became the child

inside, innocuous

as a button, helplessly growing.

I slept because it was the only

thing I could do. I even dreamed.

I couldn’t stop myself.

 

O Velório

(José María Jara: pintor mexicano)

 

O Velório

 

A tua ausência distribuiu-se

como um convite.

Os amigos e os parentes

não paravam de chegar, tentando

encher a casa.

Mas os cômodos mantinham-se acessíveis –

o cabideiro verde balançava vazio, e

a cabeceira da mesa

exigia um prato.

 

Quando me sentei na poltrona,

teu hálito quente precipitou-se

sobre meu ombro.

Quando subi à cama, presenciei

por completo tua partida às cegas.

Os outros ficaram no andar de baixo,

tentando superar

o silêncio com o pranto.

 

Quando me deitei entre os lençóis,

imergi nas águas frescas

do meu próprio ventre

e tornei-me a criança

que estava lá dentro, inócua

como um botão, a crescer indefesa.

Dormi porque era a única

coisa que poderia fazer. Até sonhei.

Não fui capaz de me tolher.

 

Referência:

 

DOVE, Rita. The wake. In: YOUNG, Kevin (Ed.). The art of losing: poems of grief & healing. 1st ed. New York, NY: Bloomsbury, 2010. p. 6.

sábado, 29 de março de 2025

Stanisław Barańczak - Porque só este mundo da dor

Para a voz lírica, neste poema do poeta polaco, a dor se apresenta como a única realidade constante e onipresente na existência humana, vivida num mundo de hostilidades inescapáveis, de implacáveis pressões, ensejadoras de sofrimentos não meramente incidentais, senão a constituir a essência mesma de nossa condição.

 

Combinam-se para tanto a força destrutiva dos elementos naturais e os litígios e discórdias que caracterizam as interações humanas, vulnerabilizando nossos corpos e mentes, tornando-os um receptáculo exposto a infortúnios – muitas vezes, como se observa, autoinduzidos –, a vogar por mares salgados de suor, entre o nascimento e a morte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Stanisław Barańczak

(1946-2014)

 

Bo tylko ten świat bólu

 

Bo tylko ten świat bólu, tylko ta

kula spłaszczona w lodowym imadle,

wychłostana burzami, łamana kołami

południków, trzeszcząca w granicach

grubymi nićmi szytych, tylko ta

cienka skóra skorupy ziemskiej, popękana

rzekami, wydzielająca z siebie pot mórz słonych

między ciosami lawy i ciosami słońca,

 

bo tylko ten świat bólu, tylko to

ciało w imadle ziemi i powietrza,

wychłostane kulami, łamane wpół ciosem

pięści, trzeszczące pod pałką

w kostnych szwach czaszki, tylko ta

cienka skorupa skóry ludzkiej, popękana

krwawo, tocząca z siebie słone morza potu

pomiędzy ciosem narodzin i śmierci,

 

bo tylko ten świat bólu; bo tylko ten świat

jest bólem; bo światem jest tylko ten ból.

 

W: “Dziennik poranny: wiersze” (1967-1981)

 

No deserto da dor

(Berthold von Kamptz: artista alemão)

 

Porque só este mundo da dor

 

Porque só este mundo da dor, só esta

esfera achatada no torno de gelo,

açoitada por tempestades, quebrada nas rodas

dos meridianos, crepitando nas fronteiras –

grosseiramente suturadas, só esta

fina pele da crosta terrestre, rachada

com os rios, excretando o suor dos mares salgados

entre os golpes de lava e os golpes do sol,

 

porque só este mundo da dor, só este

corpo no torno da terra e do ar,

açoitado com as balas, quebrado no meio com o golpe

de um punho, crepitando sob o cassetete

nas suturas dos ossos do crânio, só esta

fina crosta da pele humana, rachada

sangrentamente, vertendo salgados mares de suor

entre o golpe do nascimento e da morte,

 

porque só este mundo da dor; porque só este mundo

é dor; porque o mundo é só esta dor.

 

Em: “Diário matinal: poemas” (1967-1981)

 

Referências:

 

Em Polonês

 

BARAŃCZAK, Stanisław. Bo tylko ten świat bólu. In: __________. Wiersze zebrane. Kraków, PL: Wydawnictwo A5, 2006. s. 75.

 

Em Português

 

BARAŃCZAK, Stanisław. Porque só este mundo da dor. Tradução de Piotr Kilanowski. In: KILANOWSKI, Piotr. Vinte e dois poetas poloneses: uma pequena antologia de poesia em tradução. Belas Infiéis, Brasília, v. 9, n. 2, p. 51-52, 2000. Disponível neste endereço. Acesso em: 22 fev. 2025.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Marina Colasanti - Em busca de

Empregando a metáfora das formigas, a poetisa nos fala de sua jornada incansável e determinada – ocasionalmente frustrante – no aprestamento de letras e palavras, num movimento de busca por significado, realização e satisfação, quiçá também por conhecimento e verdade: por ser um processo em boa medida instintivo, não há como se ter absoluta certeza de que houve progresso ou maior alcance compreensivo de tais sentidos ou propósitos.

 

O arsenal lexical da derradeira “flor do Lácio” lhe é de grande utilidade, muito embora, nele, sempre haja insuficiências ou lacunas para expressar tudo o que a falante tem a dizer. Afinal, nossas aspirações muitas vezes superam os meios disponíveis que temos para alcançá-las – e tanto mais quando elas dizem respeito a algo que, em nossas mentes, ainda assoma meio indefinido ou elusivo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Marina Colasanti

(n. 1937)

 

Em busca de

 

Como formigas

enfileiro letras e palavras

em busca de um caminho

ou de

uma caça.

Tudo me serve

e nada é suficiente.

Mordisco folha e talo

mas a raiz me escapa

carrego mil migalhas

e não alcanço o trigo.

O formigueiro é fundo

e ainda assim

superfície.

E eu sigo pondo à frente uma da outra

linha tão fina

sempre em movimento

que atravessa meus dias

e de que

me alimento.

 

Nº 5

(Jackson Pollock: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

COLASANTI, Marina. Em busca de. In: __________. Mais longa vida: poesia. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2020. p. 22.