Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Manuel Alegre - Não necessariamente uma palavra

O poeta debruça-se sobre o objeto de seu mister – a Poesia –, para enfatizar seus olhares a respeito dessa força poderosa capaz de transcender a linguagem – ou melhor, as palavras –, móbil que, ainda quando não compreendido de imediato, obstina-se em manter-se conectado a algo mais profundo, no âmago da própria existência, servindo-nos como fonte de motivação e de inspiração, ao tempo que nos auxilia a contemplar o mundo com inaudito refinamento.

 

Rompendo “os diques da convenção”, a poesia não se deixa deter, controlar, eis que jungida a intensas emoções ou intuições, por vezes difíceis de lidar: a Lírica tem lá as suas aptidões libertárias, e os seus fios ressonantes podem insinuar-se pelos interstícios da realidade, tornando-a permeável ao magma seminal de sua ardente flama.

 

J.A.R. – H.C.

 

Manuel Alegre

(n. 1936)

 

Não necessariamente uma palavra

 

Há versos silenciosos ocultos submersos

no sangue no recato no pudor

há versos que quem os sente fica sem saber

se está doente ou tonto e se o melhor

não será disfarçar para que ninguém

repare na mudança

da fala do andar do gesto

ou até do silêncio.

Um poema infiltra-se. Salta por dentro

rompe todos os diques da convenção

ninguém pode conter um poema

mesmo que seja apenas

uma vogal que de repente fica azul

ou uma consoante que desata a rabiar

ninguém pode conter essa toada

esse tremor de terra que sem que se dê por isso

altera subitamente a vida

e acende nas artérias mais obscuras

não necessariamente uma palavra

mas um fogo submerso

uma espécie de pedra cintilante

um fluxo de lava.

 

Ainda que se não saiba é já um verso

algo que bate fundo

como a sílaba cantante

do poema do mundo.

 

Nascida para voar

(Vladimir Kush: artista russo)

 

Referência:

 

ALEGRE, Manuel. Não necessariamente uma palavra. In: __________. Doze naus. 1. ed. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, abr. 2007. p. 64-65.

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