O poeta debruça-se
sobre o objeto de seu mister – a Poesia –, para enfatizar seus olhares a
respeito dessa força poderosa capaz de transcender a linguagem – ou melhor, as
palavras –, móbil que, ainda quando não compreendido de imediato, obstina-se em
manter-se conectado a algo mais profundo, no âmago da própria existência,
servindo-nos como fonte de motivação e de inspiração, ao tempo que nos auxilia
a contemplar o mundo com inaudito refinamento.
Rompendo “os diques
da convenção”, a poesia não se deixa deter, controlar, eis que jungida a intensas
emoções ou intuições, por vezes difíceis de lidar: a Lírica tem lá as suas aptidões
libertárias, e os seus fios ressonantes podem insinuar-se pelos interstícios da
realidade, tornando-a permeável ao magma seminal de sua ardente flama.
J.A.R. – H.C.
Manuel Alegre
(n. 1936)
Não necessariamente
uma palavra
Há versos silenciosos
ocultos submersos
no sangue no recato
no pudor
há versos que quem os
sente fica sem saber
se está doente ou
tonto e se o melhor
não será disfarçar
para que ninguém
repare na mudança
da fala do andar do
gesto
ou até do silêncio.
Um poema infiltra-se.
Salta por dentro
rompe todos os diques
da convenção
ninguém pode conter
um poema
mesmo que seja apenas
uma vogal que de
repente fica azul
ou uma consoante que
desata a rabiar
ninguém pode conter
essa toada
esse tremor de terra
que sem que se dê por isso
altera subitamente a
vida
e acende nas artérias
mais obscuras
não necessariamente
uma palavra
mas um fogo submerso
uma espécie de pedra
cintilante
um fluxo de lava.
Ainda que se não
saiba é já um verso
algo que bate fundo
como a sílaba
cantante
do poema do mundo.
Nascida para voar
(Vladimir Kush:
artista russo)
Referência:
ALEGRE, Manuel. Não
necessariamente uma palavra. In: __________. Doze naus. 1. ed. Lisboa,
PT: Publicações Dom Quixote, abr. 2007. p. 64-65.
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