Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

David Markson - Crânio

Numa mescla de ironia, humor negro e reflexão filosófica, o poeta confronta o tema da mortalidade através de um objeto macabro – um crânio –, que, ao ser atribuído a diversas figuras eminentes da literatura mundial, acaba por ressaltar a universalidade de todos quantos são superados pela passagem do tempo, desafiando a ideia de um mais além.

 

A referência a Dostoiévski, Shelley, Gogol, Baudelaire e Poe – artistas que deixaram um duradouro legado – indica, de algum modo, o interesse de Markson pela literatura, pela engenhosidade criativa e pela busca de um significado mais profundo em seu próprio mister e, por extensão, em sua atividade intelectual, mantendo a cordura por meio de seus poemas sardônicos e espirituosos.

 

J.A.R. – H.C.

 

David Markson

(1927-2010)

 

Skull

 

That’s Dostoyevsky’s skull beside my desk.

Oh, well, perhaps it’s Percy Shelley’s then.

In either case the skull’s a skull, no fear:

True tears in those two hooded sockets once.

The teeth are bad, which may mean youth was gone;

Were Gogol’s teeth undone? Were Baudelaire’s?

 

One night, oh, years ago, Jack Kerouac

Contrived to wedge a candle stub in there;

We meant to watch it glow, but only slits

Along that jaw would let out any light.

“This thankless peon’s got no soul,” Jack said.

Next day on breakfast thought he swore it Poe.

 

There’s scarce profundity in this, lame ploy

To balance out one’s grimmer view of things;

Like questioning how long the soul’s rot takes,

Let’s say: would Jack himself be clean bone yet?

Ah, Christ, trust life to intervene indeed –

And darken even jests that keep us sane.

 

Jovem com um crânio

(Paul Cézanne: pintor francês)

 

Crânio

 

Esse é o crânio de Dostoiévski ao lado da minha secretária.

Oh, bem, então talvez seja o de Percy Shelley.

Em qualquer dos casos, não passa de um crânio, não há o que temer:

Já correram lágrimas verdadeiras por essas duas órbitas vendadas.

Os dentes estão cediços, quem sabe a denotar que a juventude se foi;

Estavam em mal estado os dentes de Gogol? E os de Baudelaire?

 

Certa noite, oh, anos atrás, Jack Kerouac

Tencionou enfiar um toco de vela lá dentro;

Queríamos vê-lo brilhar, mas só as fendas

Ao longo da mandíbula deixariam passar alguma luz.

“Este peão ingrato não tem alma”, afirmou Jack.

No dia seguinte, no desjejum, creio que jurou tratar-se de Poe.

 

Há pouca profundidade nesse estratagema pouco convincente

Para equilibrar a visão mais sombria das coisas;

Como questionar quanto tempo demora a decomposição da alma,

Digamos: o próprio Jack já teria se despojado dos ossos?

Ah, Cristo, confiemos em que a vida intervirá de fato –

E haverá de toldar até mesmo os chistes que nos mantêm sãos.

 

Referência:

 

MARKSON, David. Skull. In: __________. Collected poems. 1st ed. Normal, IL: Dalkey Archive Press, 1993. p. 15.

Nenhum comentário:

Postar um comentário