Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Carlos Drummond de Andrade - Visões

Drummond contrapõe à visão profética do apóstolo João, no Apocalipse – a um só tempo grandiloquente e inquietante –, uma perspectiva mais otimista e terrenal, digo melhor, mais humana e confiante, centrada nas habituais alegrias do quotidiano, na beleza das pequenas coisas e na esperança ante o futuro, como um jardim que, pela imaginação do horticultor, medra a cada começo de ano num terreno antes infecundo.

 

Veja-se que o itabirano começa por elogiar a capacidade visionária de São João, a qual, conforme lhe parece, supera a de renomados poetas – como Dante, Blake e Lautréamont –, razão por que o qualifica também como um “extraordinário poeta”, claro está, por suas capacidades preditivas, antecipatórias de vastas hecatombes no porvir.

 

Viver com intensidade cada momento, celebrando o mundano, aquilo a que temos acesso de modo imediato – a beleza da natureza, o mar, as montanhas, a harmonia dos acordes musicais, na companhia serena de nossos pares –, vale como uma profecia em escala mais modesta, mas que se mostra bastante capaz de nos tornar felizes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos D. de Andrade

(1902-1987)

 

Visões

 

O apóstolo São João foi realmente

um poeta extraordinário como igual

não houve depois –

nem Dante

nem Blake

nem Lautréamont.

 

Teve todas as visões antes da gente.

viu as coisas que são e as que serão

no mais futuro dos tempos, e que resta

a prever, a como-ver, aos repetentes míopes

que somos e não vemos o Dragão

e nem mesmo o besouro?

 

Viu animais cheios de olhos em volta e por dentro,

glorificando Alguém no trono, semelhante

ao jaspe e à sardônica.

Viu a mulher, sentada na besta escarlate

de sete cabeças e dez chifres

e na fronte da mulher leu a inscrição: Mistério.

Viu o nome que ninguém conhece

nem saberia inventar, pois se inventou a si mesmo.

Os surrealistas não puderam com ele.

Viu a chave do abismo

que Mallarmé não logrou levar no bolso.

Viu tudo.

Viu principalmente o supertrágico, a explosão nuclear,

e nisto me afasto dele.

 

Não, não gostaria de predizer o fim do mundo,

com sete taças de ouro repletas da ira de Deus

despejando-se sobre a Terra.

Quero ver o mundo começar

a cada 1º de janeiro

como o jardim começa no areal

pela imaginação do jardineiro.

 

Desculpe, São João, se meu Apocalipse

é revelação de coisas simples

na linha do possível.

Anuncio uma lâmpada, não sete

(e nenhuma trombeta)

a clarear o rosto amante:

são dois rostos que, se contemplando,

um no outro se veem transmutados.

Pressinto uma alegria

miudinha, trivial, embelezando

em plena via pública o passante

mais feio, mais deserto

de bens interiores.

 

Profetizo manhãs para os que saibam

haurir o mel, a flor, a cor do céu.

O mar darei a todos, de presente,

junto à praia, e o crepúsculo sinfônico

pulsando sobre os montes. Um vestido

estival, clarocarne, passará,

passarino, aqui, ali, e quantos ritmos

um pisar de mulher irá criando

na pauta de teu dia, meu irmão.

Oráculo paroquial, a meus amigos

e aos amigos de outros ofereço

o doce instante, a trégua entre cuidados,

um brincar de meninos na varanda

que abre para alvíssimos lugares

onde tudo que existe, existe em paz.

 

E mais não vejo, e calo, que as pequenas

coisas são indizíveis se fruídas

no intenso sentimento de uma vida

(são 20 ou 70 anos?)

limitada e perene em seu minuto

de raiz, de folha dançarina e fruto.

 

1-1-1965

 

Em: “Versiprosa” (1967)

 

Alegoria para o Apocalipse

(Joseph Heintz, o Jovem: pintor alemão)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Visões. In: __________. Antologia poética. Organizada pelo autor. Prefácio de Marco Lucchesi. 48ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 357-359.

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