Drummond contrapõe à
visão profética do apóstolo João, no Apocalipse – a um só tempo grandiloquente
e inquietante –, uma perspectiva mais otimista e terrenal, digo melhor, mais humana
e confiante, centrada nas habituais alegrias do quotidiano, na beleza das
pequenas coisas e na esperança ante o futuro, como um jardim que, pela
imaginação do horticultor, medra a cada começo de ano num terreno antes
infecundo.
Veja-se que o itabirano
começa por elogiar a capacidade visionária de São João, a qual, conforme lhe
parece, supera a de renomados poetas – como Dante, Blake e Lautréamont –, razão
por que o qualifica também como um “extraordinário poeta”, claro está, por suas
capacidades preditivas, antecipatórias de vastas hecatombes no porvir.
Viver com intensidade
cada momento, celebrando o mundano, aquilo a que temos acesso de modo imediato –
a beleza da natureza, o mar, as montanhas, a harmonia dos acordes musicais, na
companhia serena de nossos pares –, vale como uma profecia em escala mais
modesta, mas que se mostra bastante capaz de nos tornar felizes.
J.A.R. – H.C.
Carlos D. de
Andrade
(1902-1987)
Visões
O apóstolo São João
foi realmente
um poeta
extraordinário como igual
não houve depois –
nem Dante
nem Blake
nem Lautréamont.
Teve todas as visões
antes da gente.
viu as coisas que são
e as que serão
no mais futuro dos
tempos, e que resta
a prever, a como-ver,
aos repetentes míopes
que somos e não vemos
o Dragão
e nem mesmo o
besouro?
Viu animais cheios de
olhos em volta e por dentro,
glorificando Alguém
no trono, semelhante
ao jaspe e à
sardônica.
Viu a mulher, sentada
na besta escarlate
de sete cabeças e dez
chifres
e na fronte da mulher
leu a inscrição: Mistério.
Viu o nome que
ninguém conhece
nem saberia inventar,
pois se inventou a si mesmo.
Os surrealistas não
puderam com ele.
Viu a chave do abismo
que Mallarmé não
logrou levar no bolso.
Viu tudo.
Viu principalmente o
supertrágico, a explosão nuclear,
e nisto me afasto
dele.
Não, não gostaria de predizer
o fim do mundo,
com sete taças de
ouro repletas da ira de Deus
despejando-se sobre a
Terra.
Quero ver o mundo
começar
a cada 1º de janeiro
como o jardim começa
no areal
pela imaginação do
jardineiro.
Desculpe, São João,
se meu Apocalipse
é revelação de coisas
simples
na linha do possível.
Anuncio uma lâmpada,
não sete
(e nenhuma trombeta)
a clarear o rosto
amante:
são dois rostos que,
se contemplando,
um no outro se veem
transmutados.
Pressinto uma alegria
miudinha, trivial,
embelezando
em plena via pública
o passante
mais feio, mais
deserto
de bens interiores.
Profetizo manhãs para
os que saibam
haurir o mel, a flor,
a cor do céu.
O mar darei a todos,
de presente,
junto à praia, e o
crepúsculo sinfônico
pulsando sobre os montes.
Um vestido
estival, clarocarne,
passará,
passarino, aqui, ali,
e quantos ritmos
um pisar de mulher
irá criando
na pauta de teu dia,
meu irmão.
Oráculo paroquial, a
meus amigos
e aos amigos de
outros ofereço
o doce instante, a
trégua entre cuidados,
um brincar de meninos
na varanda
que abre para
alvíssimos lugares
onde tudo que existe,
existe em paz.
E mais não vejo, e
calo, que as pequenas
coisas são indizíveis
se fruídas
no intenso sentimento
de uma vida
(são 20 ou 70 anos?)
limitada e perene em
seu minuto
de raiz, de folha
dançarina e fruto.
1-1-1965
Em: “Versiprosa”
(1967)
Alegoria para o
Apocalipse
(Joseph Heintz, o
Jovem: pintor alemão)
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond. Visões. In: __________. Antologia poética. Organizada pelo
autor. Prefácio de Marco Lucchesi. 48ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p.
357-359.
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