Apresentando uma
visão particular da beleza passadiça do verão – carregada de simbolismos e
metáforas bem mais além da simples caracterização de um clima cálido em fluxo nos
dias do mês de fevereiro, com o firmamento no apogeu do “azul”, mas com “prevista
duração” e “morte certa” –, o poeta acaba por encetar um paralelo entre as
estações do ano e as quadras por que passamos ao longo da vida.
Mais alguns dias e o
outono estará à porta, e a consciência de que, doravante, as coisas passarão a
definhar um pouco mais celeremente deflagra uma agônica “luta de resistência”,
como um ato de rebeldia ante a inevitabilidade da morte, aferrando-se o verão, enquanto
“fera ferida”, a tudo quanto existe: areia, mar, relva – até mesmo o coração do
poeta.
Da plena maturidade à
velhice, eis a luta por um sentido de permanência, permeado por um desconsolo
que nos atinge n’alma, mormente quando passamos a prestar mais atenção aos
estalidos repentinos e efêmeros que assinalam cada dia que se vai, dando curso
à escala dos éons, indiferentemente às paixões e aos pesares humanos.
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(1930-2016)
Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração
deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.
A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.
Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.
E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.
O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida
Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.
E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda agonia
resiste mordendo o chão.
Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
É essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.
Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração – resiste.
Em: “Poemas Concretos
/ Neoconcretos” (1957-1958)
O Verão
(Claude Monet: pintor
francês)
Referência:
GULLAR, Ferreira. Verão. In: __________. Os melhores poemas de Ferreira Gullar. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. 4. ed. São Paulo, SP: Global, ago. 1990. p. 68-69. (Coleção ‘Os Melhores Poemas’; v. 3)
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