Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Ferreira Gullar - Verão

Apresentando uma visão particular da beleza passadiça do verão – carregada de simbolismos e metáforas bem mais além da simples caracterização de um clima cálido em fluxo nos dias do mês de fevereiro, com o firmamento no apogeu do “azul”, mas com “prevista duração” e “morte certa” –, o poeta acaba por encetar um paralelo entre as estações do ano e as quadras por que passamos ao longo da vida.

 

Mais alguns dias e o outono estará à porta, e a consciência de que, doravante, as coisas passarão a definhar um pouco mais celeremente deflagra uma agônica “luta de resistência”, como um ato de rebeldia ante a inevitabilidade da morte, aferrando-se o verão, enquanto “fera ferida”, a tudo quanto existe: areia, mar, relva – até mesmo o coração do poeta.

 

Da plena maturidade à velhice, eis a luta por um sentido de permanência, permeado por um desconsolo que nos atinge n’alma, mormente quando passamos a prestar mais atenção aos estalidos repentinos e efêmeros que assinalam cada dia que se vai, dando curso à escala dos éons, indiferentemente às paixões e aos pesares humanos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ferreira Gullar

(1930-2016)

 

Verão

 

Este fevereiro azul

como a chama da paixão

nascido com a morte certa

com prevista duração

 

deflagra suas manhãs

sobre as montanhas e o mar

com o desatino de tudo

que está para se acabar.

 

A carne de fevereiro

tem o sabor suicida

de coisa que está vivendo

vivendo mas já perdida.

 

Mas como tudo que vive

não desiste de viver,

fevereiro não desiste:

vai morrer, não quer morrer.

 

E a luta de resistência

se trava em todo lugar:

por cima dos edifícios

por sobre as águas do mar.

 

O vento que empurra a tarde

arrasta a fera ferida,

rasga-lhe o corpo de nuvens,

dessangra-a sobre a Avenida

 

Vieira Souto e o Arpoador

numa ampla hemorragia.

Suja de sangue as montanhas,

tinge as águas da baía.

 

E nesse esquartejamento

a que outros chamam verão,

fevereiro ainda agonia

resiste mordendo o chão.

 

Sim, fevereiro resiste

como uma fera ferida.

É essa esperança doida

que é o próprio nome da vida.

 

Vai morrer, não quer morrer.

Se apega a tudo que existe:

na areia, no mar, na relva,

no meu coração – resiste.

 

Em: “Poemas Concretos / Neoconcretos” (1957-1958)

 

O Verão

(Claude Monet: pintor francês)

 

Referência:

 

GULLAR, Ferreira. Verão. In: __________. Os melhores poemas de Ferreira Gullar. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. 4. ed. São Paulo, SP: Global, ago. 1990. p. 68-69. (Coleção ‘Os Melhores Poemas’; v. 3)

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