Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Mario Benedetti - Consternados, raivosos

Esta é uma homenagem póstuma a Che Guevara – vulto emblemático da Revolução Cubana –, logo depois que o poeta uruguaio tomou conhecimento de sua morte na Bolívia, em 9.10.1967, a refletir a comoção e a raiva que então sentiu pela execução do médico argentino, figura histórica pela qual certamente nutria alguma admiração, pois que, como ele próprio, compromissado na luta contra a injustiça social e a opressão, em especial, em terras da América Latina.

 

A elegia segue a sua missão de ser um recordatório de que as desigualdades injustas devem ser combatidas, de que a parelha “justiça x igualdade” não pode render-se a um estatuto de mera formalidade legal, senão que há de pautar a ação no âmbito da realidade concreta, para assim honrar a memória de todos quantos se propuseram a colocar a dignidade da pessoa humana em primeiro plano.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Benedetti

(1920-2009)

 

Consternados, rabiosos

 

Vámonos,

derrotando afrentas.

Ernesto “Che” Guevara

 

Así estamos

consternados

rabiosos

aunque esta muerte sea

uno de los absurdos previsibles

 

da vergüenza mirar

los cuadros

los sillones

las alfombras

sacar una botella del refrigerador

teclear las tres letras mundiales de tu nombre

en la rígida máquina

que nunca

nunca estuvo

con la cinta tan pálida

 

vergüenza tener frío

y arrimarse a la estufa como siempre

tener hambre y comer

esa cosa tan simple

abrir el tocadiscos y escuchar en silencio

sobre todo si es un cuarteto de Mozart

 

da vergüenza el confort

y el asma da vergüenza

cuando tú comandante estás cayendo

ametrallado

fabuloso

nítido

 

eres nuestra conciencia acribillada

 

dicen que te quemaron

con qué fuego

van a quemar las buenas

las buenas nuevas

la irascible ternura

que trajiste y llevaste

con tu tos

con tu barro

 

dicen que incineraron

toda tu vocación

menos un dedo

 

basta para mostrarnos el camino

para acusar al monstruo y sus tizones

para apretar de nuevo los gatillos

 

así estamos

consternados

rabiosos

claro que con el tiempo la plomiza

consternación

se nos irá pasando

la rabia quedará

se hará mas limpia

 

estás muerto

estás vivo

estás cayendo

estás nube

estás lluvia

estás estrella

 

donde estés

si es que estás

si estás llegando

 

aprovecha por fin

a respirar tranquilo

a llenarte de cielo los pulmones

 

donde estés

si es que estás

si estás llegando

será una pena que no exista Dios

 

pero habrá otros

claro que habrá otros

dignos de recibirte

comandante.

 

Montevideo, octubre de 1967.

 

Estampa de Che Guevara

(1928-1967)

 

Consternados, raivosos

 

Vamos em frente,

derrotando afrontas.

Ernesto “Che” Guevara

 

Assim estamos

consternados

raivosos

ainda que esta morte seja

um dos absurdos previsíveis

 

dá vergonha olhar

os quadros

as poltronas

os tapetes

tirar uma garrafa do refrigerador

teclar as três letras mundiais de teu nome

na rígida máquina

que nunca

nunca esteve

com a fita tão pálida

 

vergonha ter frio

e aconchegar-se à lareira como sempre

ter fome e comer

essa coisa tão simples

abrir o toca-discos e escutar em silêncio

sobretudo se é um quarteto de Mozart


dá vergonha o conforto

e a asma dá vergonha

quando tu comandante está caindo

metralhado

fabuloso

nítido

 

és nossa consciência massacrada

 

dizem que te queimaram

com que fogo

vão queimar as boas

as boas novas

a irascível ternura

que trouxeste e carregaste

com tua tosse

com teu barro

 

dizem que incineraram

toda tua vocação

menos um dedo

 

basta ele para mostrar-nos o caminho

para acusar o monstro e seus tições

para apertar de novo os gatilhos

 

assim estamos

consternados

raivosos

claro que com o tempo a soturna

consternação

se nos irá passando

a raiva subsistirá

se tornará mais limpa

 

estás morto

estás vivo

estás caindo

estás nuvem

estás chuva

estás estrela

 

onde quer que estejas

se é que estás

se estás chegando

será uma pena que Deus não exista

 

aproveita por fim

para respirar tranquilo

para encher de céu os teus pulmões

 

mas haverá outros

claro que haverá outros

dignos de receber-te

comandante.

 

Montevidéu, outubro de 1967.

 

Referência:

 

BENEDETTI, Mario. Consternados, rabiosos. In: __________. Antología poética. Introducción de Pedro Orgambide. Selección del autor. 4. ed., 8. reimp. Madrid, ES: Alianza Editorial, 2017. p. 116-119. (‘El libro de bolsillo’)

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