Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Julio J. Casal - Não tens que ir

Muitas das vezes sonhamos em partir, à procura de um lugar que nos satisfaça a imaginação, como se fora um paraíso sobre a terra, quando, de fato, o que nos falta, é um olhar mais atilado sobre tudo o que, no aqui e agora, se encontra ao nosso redor – tanta beleza e perfeição a não desmerecer o sítio topográfico presente, em detrimento de um idealizado alhures.

 

Não se defende, obviamente, que viagens perscrutadoras ou de turismo ao redor do mundo sejam desnecessárias, mesmo porque, eventualmente, tais excursões têm o potencial de nos tornar cientes de que nem sempre estamos “no melhor dos mundos possíveis”, e algumas mudanças bem poderiam ser adotadas em nosso torrão, para nos trazer um nível mais imediato de bem-estar.

 

Dialogando um pouco com as linhas do poema, percebe-se com clareza a sugestão do autor de que viagens, para além de implicarem movimento físico, são capazes de ensejar um desapego emocional e mental em relação ao lugar de origem, desequilibrando a balança de valoração das coisas em desfavor ao que já se tem.

 

Ademais, a perspectiva de mudança não se associa necessariamente ao movimento das pessoas, senão aos cambiantes caminhos, ou nas palavras do poeta, “tudo corre e voa pelo mundo para estar quieto”. Trata-se, obviamente, de uma transmutação no modo de se contemplar o entorno, a qual se parece, em alguma medida, à expendida neste poema de Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”:

 

XL

 

Passa uma borboleta por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move.

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor.

 

Em suma: mude também a sua forma de perceber as coisas e algo certamente se alterará em você, mesmo que não tenha dado um passo físico em direção a outra paragem. Ou será mesmo que o jardim do vizinho, de fato, é sempre mais florido do que o seu?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Julio J. Casal

(1889-1954)

 

No te has de ir

 

No to has de ir. La tierra

está demasiado

bien hecha.

 

Aprendes de memoria las palabras

de los viajes

y no sabes que para partir

hay que olvidarlo todo.

 

Miras trenes, y barcos, y palomas.

Ignoras que ellos corren

y vuelan por el mundo

para estar quietos.

Es el mundo que anda.

No es el barco, es el mar

que se mueve. No pasan los viajeiros,

es el camino.

 

No vuela la paloma,

es sólo el aire.

 

No te has de ir. La tierra

está demasiado

bien hecha.

 

Não precisas ir

(Mary Larsen: artista norte-americana)

 

Não tens que ir

 

Não tens que ir. A terra

se acha demasiado

bem feita.

 

Aprendes de cor as palavras

das viagens

e não sabes que, para partir,

há que se esquecer de tudo.

 

Observas trens, e barcos, e pombas.

Ignoras que correm

e voam pelo mundo

para estar quietos.

É o mundo que anda.

Não é o barco, é o mar

que se move. Não são os viajantes que passam,

é o caminho.

 

Não é a pomba que voa,

mas apenas o ar.

 

Não tens que ir. A terra

se acha demasiado

bem feita.

 

Referência:

 

CASAL, Julio J. No te has de ir. In: __________. Aquí Poesía: publicación bimestral, Montevideo (UY), vol. 12, p. 48, 1964. Disponível neste endereço. Acesso em: 18 fev. 2025.

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