A um nível simbólico,
este poema de Gastão pode ser interpretado como uma metáfora para o processo
criativo de um poeta – presumivelmente Carlos de Oliveira (1921-1981) – que, em
seus contornos mais íntimos, escudado pelo silêncio, encontrava inspiração nas
palavras num fluxo imparável, mesmo a despeito da natureza cambiante ou de eventuais
limitações impostas pela realidade material a que integrado.
Ao final, tem-se o
poema, essa substância escura e misteriosa, originária da relação entre a
linguagem e as experiências quotidianas, bela mas infecunda, por hipótese, se
não compartilhada com o mundo, se não posta à prova em seu poder de transformação,
de desobstrução dos portais que dão acesso a outros tantos sentidos para os
domínios do ser e do estar.
J.A.R. – H.C.
Gastão Cruz
(1941-2022)
Substância escura
Ele vinha sentar-se
junto à chávena
falando devagar com a
voz grave
amável e feroz de
quem achava
a chave dos seus dias
nas palavras
O braço pontual como
o anel
vivo dum rio vivo
repousava
entre as margens
paradas da instável
mesa parede rede
invariável
A manga do casaco a
luz da tarde
cobria de silêncio em
cada pausa
A voz substância
escura como a tarde
retomava o trabalho
como a poalha
ilúcida da tarde
sobre a toalha
inútil do crepúsculo
Ele estava
sentado entre as
palavras e trazia
no silêncio da mão
uma vara de prata
O pássaro madrugador
(Charles Spencelayh:
pintor inglês)
Referência:
CRUZ, Gastão. Substância escura. In: __________. O pianista. Porto, PT: Limiar, 1984. p. 18.
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