Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Gastão Cruz - Substância escura

A um nível simbólico, este poema de Gastão pode ser interpretado como uma metáfora para o processo criativo de um poeta – presumivelmente Carlos de Oliveira (1921-1981) – que, em seus contornos mais íntimos, escudado pelo silêncio, encontrava inspiração nas palavras num fluxo imparável, mesmo a despeito da natureza cambiante ou de eventuais limitações impostas pela realidade material a que integrado.

 

Ao final, tem-se o poema, essa substância escura e misteriosa, originária da relação entre a linguagem e as experiências quotidianas, bela mas infecunda, por hipótese, se não compartilhada com o mundo, se não posta à prova em seu poder de transformação, de desobstrução dos portais que dão acesso a outros tantos sentidos para os domínios do ser e do estar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gastão Cruz

(1941-2022)

 

Substância escura

 

Ele vinha sentar-se junto à chávena

falando devagar com a voz grave

amável e feroz de quem achava

a chave dos seus dias nas palavras

 

O braço pontual como o anel

vivo dum rio vivo repousava

entre as margens paradas da instável

mesa parede rede invariável

 

A manga do casaco a luz da tarde

cobria de silêncio em cada pausa

A voz substância escura como a tarde

retomava o trabalho como a poalha

 

ilúcida da tarde sobre a toalha

inútil do crepúsculo Ele estava

sentado entre as palavras e trazia

no silêncio da mão uma vara de prata

 

O pássaro madrugador

(Charles Spencelayh: pintor inglês)

 

Referência:

 

CRUZ, Gastão. Substância escura. In: __________. O pianista. Porto, PT: Limiar, 1984. p. 18.

Nenhum comentário:

Postar um comentário