Já tudo se disse sobre a narrativa dos contratempos vivenciados pelo
cavaleiro da triste figura, em caudalosa metaliteratura produzida nos mais
de quatrocentos anos, desde que essa proverbial obra das letras mundiais veio a
lume, pelas mãos do espanhol Miguel de Cervantes.
Ainda assim, persiste ela a excitar e a fomentar emoções e revérberos na
mente de seus leitores, os poetas em especial, que nela distinguem a caracterização
prototípica de boa parte das misérias humanas, filtrando-as em elocuções
eivadas da mais pura poesia, a exemplo do poema desta postagem, cujo autor põe
de manifesto todo o seu profundo conhecimento sobre a obra em comento.
J.A.R. – H.C.
João Manuel Simões
(n. 1939)
Evocação de D. Quixote
I
No bricabraque
intemporal, fantástico,
pasto das sombras,
sujos de bolor
e de teias de aranha,
jazem, mudos,
os seguintes objetos
que descrevo:
a conspícua bacia do
barbeiro
(o elmo de Mambrino)
que a ferrugem
rói vorazmente, lepra
esverdeada;
um fragmento da mó
(que mói tempo?)
do moinho de vento,
rude máscara
do nigromante bruto,
figadal
inimigo do homem cuja
lança
apenas foi brandida
em causas justas,
desfazendo os mais
negros, vis agravos,
desentortando tortos,
sem descanso,
e protegendo órfãos e
viúvas;
um sapato em
frangalhos do mais fiel
dos escudeiros que
jamais viveram
sob o curso do sol ou
das estrelas,
que Sancho Pança,
ilustre, se chamou;
um pedaço de chita do
avental
(ou talvez de outra
peça mais secreta)
da nobre Dulcineia del
Toboso,
alta e dina princesa
de bordel;
dois livros velhos de
cavalaria
(vade retro, Satana,
vade retro)
salvados da fogueira
do abade.
II
Do fidalgo manchego,
Cavaleiro
de tão Triste Figura,
do mais casto
enamorado que jamais
se viu,
nada mais resta além
do nome escrito
num velho pergaminho
amarelado,
alimento de traças e
murídeos
gerados pela noite,
clandestinos.
Mas esse nome basta:
com luz própria,
(em cada iluminura
ardem cores,
florescem chamas,
brilham fogos-fátuos)
cintila cruamente nas
profundas
do velho bricabraque
que desvendo,
os utensílios mágicos
dispersos
pelo chão antiquíssimo,
noturno.
Das letras rubras
sete do seu nome,
heráldicas insígnias
que ultrapassam
fulgurações que a
noite vai tecendo,
eleva-se, avoluma-se,
agiganta-se
um vulto esguio,
pálido, translúcido.
É o espectro ou é o
corpo do fidalgo
engenhoso, criado na
oficina
onírica do artesão
Cervantes?
III
Espectro irreal ou
corpo verdadeiro,
fidedigna presença de
matéria
ou transfiguração
fantasmagórica,
ei-lo que surge,
assombração na bruma.
E um relincho se
escuta na distância
e um galope estremece
novamente
as planuras
intérminas da Mancha.
Vem luzidio o alazão
de sonho,
pégaso de cristal,
corcel de espanto,
bucéfalo encantado
cujas patas
anseiam novos
périplos e trilhas.
Teu Rocinante volta,
D. Quixote,
dentro da noite
enluarada e fria:
de lança em riste e
olhar iluminado,
parte de novo rumo às
aventuras!
Se os moinhos de
vento já se foram
(são hoje apenas
névoa, sem moendas)
os gigantes resistem,
traiçoeiros,
escondidos atrás dos
seus disfarces,
pérfidos malandrins:
não lhes dês tréguas!
Contra eles investe o
puro gládio,
qual Rei Artur ou
Amadis de Gaula,
paladino do sonho e
da ilusão
que enchem de luz,
antes da Noite, a Vida!
Dom Quixote
(Alexander Pacheco:
artista brasileiro)
Referência:
SIMÕE, João Manuel. Evocação de D.
Quixote. In: __________. Sintaxe do
silêncio. Curitiba, PR: Editora Lítero-Técnica, 1984. p. 23-25.
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