Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Zbigniew Herbert - O Senhor Cogito observa a sua face no espelho

Através do olhar crítico do Sr. Cogito, seu alter ego, Herbert explora, por intermédio destes expressivos versos, a dicotomia entre o ser interior e a máscara social – nossa identidade pessoal –, bem assim a futilidade de quaisquer traços de vaidade, tudo muito à vista das experiências pelas quais passamos, nosso passado, nossas ações e os condicionamentos e influências que recebemos do entorno natural e coletivo.

 

Somos as luzes e sombras de uma portentosa carga histórica e psicológica que cada indivíduo leva consigo, um amálgama de características físicas, tradições e valores, ou mais que isso, de impulsos primários e legados culturais a suscitarem aspirações mais refinadas, as quais, ao fim e ao cabo, deixam uma marca indelével em nossa aparência física e nossa psique.

 

J.A.R. – H.C.

 

Zbigniew Herbert

(1924-1998)

 

Pan Cogito obserwuje w lustrze swoją twarz

 

Kto pisał nasze twarze na pewno ospa

kaligraficznym piórem znacząc swoje o

lecz po kim mam podwójny podbródek

po jakim żarłoku gdy cała moja dusza

wzdychała do ascezy dlaczego oczy

osadzone tak blisko wszak to on nie ja

wypatrywał wśród chaszczy najazdu Wenedów

uszy zbyt odstające dwie muszle ze skóry

zapewne spadek po praszczurze który łowił echo

dudniącego pochodu mamutów przez stepy

 

czoło niezbyt wysokie myśli bardzo mało

– kobiety złoto ziemia nie dać się strącić z konia

książę myślał za nich a wiatr niósł po drogach

darli palcami mury i nagle z wielkim krzykiem

spadali w próżnię by powrócić we mnie

 

a przecież kupowałem w salonach sztuki

pudry mikstury maście

szminki na szlachetność

przykładałem do oczu marmur zieleń Veronesa

Mozartem nacierałem uszy

doskonaliłem nozdrza wonią starych książek

 

przed lustrem twarz odziedziczoną

worek gdzie fermentują dawne mięsa

żądze i grzechy średniowieczne

paleolityczny głód i strach

 

jabłko upada przy jabłoni

w łańcuch gatunków spięte ciało

 

tak to przegrałem turniej z twarzą

 

Autorretrato em frente ao espelho

(Henri de Toulouse-Lautrec: artista francês)

 

O Senhor Cogito observa a sua face no espelho

 

Quem escreveu os nossos rostos certamente a catapora

com a pena caligráfica marcando o seu “o”

mas de quem herdei o duplo queixo

de que glutão quando toda a minha alma

suspira à ascese por que os olhos

plantados tão próximos se foi ele e não eu

quem procurava no meio do matagal a invasão dos Vênedos

orelhas demasiadamente destacadas duas conchas de pele

certamente legado de um avoengo que caçava o eco

da estrondosa marcha dos mamutes pelas estepes

 

a testa não muito alta bem poucos pensamentos

– mulheres ouro terra não se deixar derrubar do cavalo –

um príncipe pensava por eles e o vento os carregava pelas estradas

rasgavam as muralhas com os dedos e de repente com

um grande grito

caíam no vazio para voltarem em mim

 

mas eu comprava nos salões de arte

pós misturas pomadas

batons para o enobrecimento

aplicava nos olhos o mármore o verde de Veronese

esfregava os ouvidos com Mozart

aperfeiçoava as narinas com o odor de livros velhos

 

diante do espelho a face herdada

saco no qual fermentam carnes antigas

cobiças e pecados medievais

fome e medo paleolíticos

 

o fruto cai perto da árvore

o corpo preso numa corrente de espécies

 

foi assim que perdi o torneio com a face

 

Referência:

 

HERBERT, Zbibniew. Pan Cogito obserwuje w lustrze swoją twarz / O Senhor Cogito observa a sua face no espelho. Tradução de Piotr Kilanowski. In: MENDONÇA, Vanderley (Ed.). Lira argenta: poesia em tradução. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Selo Demônio Negro, 2017. Em polonês: p. 356 e 358; em português: p. 357 e 359.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Carlos Nejar - Gazel do teu paraíso

Nejar explora poeticamente o tema do desejo, do prazer, da sensualidade e, por extensão, da própria propagação da vida e enfrentamento à sombra da mortalidade, através da metáfora da maçã, símbolo tradicionalmente associado à tentação e à queda, na narrativa bíblica do Jardim do Éden.

 

A fruta surge em cada vívida imagem que se vincula ao corpo da amada – voz, pernas, o sexo, seios, pés, mãos –, destarte uma autêntica alegoria de sedução, de paixão e de vitalidade, integrando-se, por vezes colacionando-se, à paisagem natural ao redor, convertida num paraíso terrenal, em suas reiteradas sazões.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Nejar

(n. 1939)

 

Gazel do teu paraíso

 

Não quero esta maçã branca,

quero a outra que me dás.

Não quero a maçã da sombra

que apenas na sombra jaz.

A intemporã, colhida

com orvalho em cima da paz,

A perto das madressilvas,

e de tão apetecida

é cada vez mais veraz.

A maçã de cotovia

da tua fala, a maçã

das pernas mansas e esguias

e a do sexo, talismã

de outra maçã sombria

no paraíso do chão.

 

Quando, amada, te avezinhas,

todo o teu corpo é maçã,

Os seios, maçãs cativas,

e os pés selvagens, as mãos

que alongas, a casca fina

das celestes estações.

 

E quando a maçã se inclina,

o inverno se faz verão.

E se adormeces, menina,

o sono é maçã. Depois

pelo caroço do tempo

a morte se recompôs,

mas não há morte junto ao pelo

de maçãs. Nunca mais veio

a morte quando te amo,

se em morte me precavenho (*)

de maçãs pelos teus ramos.

 

A maçã do amor

(Antonio Maggi: artista italiano)

 

Nota:

 

(*). “Precavenho”, tal como consta na obra em referência, apesar de a forma, de fato, não existir para esse verbo defectivo.

 

Referência:

 

NEJAR, Carlos. Gazel do teu paraíso. In: __________. A idade da aurora: poesia II. São Paulo, SP: Ateliê Editorial, Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca Nacional, 2002. p. 216-217.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Alfredo Veiravé - Madame Bovary

O poeta argentino faz uma reinterpretação contemporânea, ao mesmo tempo crítica e compassiva, da tragédia em que envolta a protagonista do romance homônimo de Gustave Flaubert (1821-1880): a seu ver, a tentativa de escapar à solidão levou Emma a um amplificado fracasso, dir-se-ia até inevitável, do que se a tivesse tomado por algo pessoal e exclusivo. Com efeito, sem as ferramentas para vogar pelas complexas águas da vida, a senhorinha acabou por submergir num vórtice arrasador de liberdade sem freios e de paixões sinistras.

 

Carente de compreensão e de conexão emocional, numa sociedade com mentalidade conservadora e repressiva, Madame Bovary teria sido vítima das expectativas sociais e de gênero impostas às mulheres de seu tempo. Para atenuar os tormentos de Emma, o falante lhe propõe que encontre consolo junto à cultura popular hodierna – adotando, v.g., a postura da contracultura hippie dos anos 60 ou, ainda, ouvindo as composições dos Beatles –, longe, por conseguinte, das imposições restritivas do contexto social provinciano em que a protagonista, de fato, vivera.

 

J.A.R. – H.C.

 

Alfredo Veiravé

(1928-1991)

 

Madame Bovary

 

Emma te equivocaste

cuando saliste de tu casa en un carruaje con grandes

ruedas que corrían hacia atrás como en las películas del

Oeste

porque tu soledad era algo que debía ser solamente tuya

y porque era fatal que

nadie te comprendiera en ese pueblo de provincias

ni siquiera tu marido

el pobre hombre gris herido de tu amor

Bueno no me hables ahora de tus taquicardias

o de los vestidos con enaguas y encajes

déjame explicarte

que me conduelo solamente

porque te perseguían furiosamente

los vecinos ineptos en el juego

de tu corazón virgen

y tu siglo era un cambio

lentamente mirado a través de las celosías

de la villa

más bien ponte el anillo o los collares de los hippies

y piensa en Carnaby Street en cómo lograr la infidelidad

sin que tengas que recurrir a tu conciencia

de pobre muchacha provinciana

Yo pienso que buscabas saber solamente

cómo te desnudarían los otros

y estos otros cretinos te traicionaron

 Emma

Dame la mano no llores más

quédate en silencio

y escuchemos juntos estos discos de los Beatles

 

Jovem num barco

(James Tissot: pintor francês)

 

Madame Bovary

 

Emma, cometeste um erro

quando saíste de casa numa carruagem com grandes

rodas que andavam para trás, como nos filmes de

faroeste,

porque a tua solidão era algo que deveria ser só tua

e porque era fatal que

ninguém te compreendesse naquela aldeia provinciana,

nem mesmo teu marido,

o pobre e tedioso homem ferido pelo teu amor.

Bem, não me fales agora de tuas taquicardias

ou dos vestidos com anáguas e rendas;

deixa-me explicar-te

que só me sinto condoído

em razão de que te perseguiam furiosamente

os vizinhos ineptos no jogo

de teu coração virginal,

e o teu século era uma mudança

que se divisava tão lentamente através das gelosias

da herdade;

mas agora põe-te o anel ou os colares dos hippies

e pensa em Carnaby Street, em como alcançar a infidelidade

sem que tenhas que recorrer à tua consciência

de pobre senhorinha de província.

Julgo que estavas apenas procurando saber

como os outros haveriam de te despir,

e esses cretinos te traíram.

  Emma,

Dá-me a mão, não chores mais,

fica em silêncio

e escutemos juntos estes álbuns dos Beatles.

 

Referência:

 

VEIRAVÉ, Alfredo. Madame Bovary. In: BORDA, Juán Gustavo Cobo (Selleción, prólogo y notas). Antología de la poesía hispanoamericana. 1. ed. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 365. (Colección ‘Tierra Firme’)