Temos aqui uma bela reflexão poética do escritor belga, de expressão
francesa, Henry Michaux, extraída de sua obra “Passages” (“Passagens”), de 1950.
Michaux, que também foi pintor, se expressa idiossincraticamente e, talvez
por isso mesmo, sua prosa tenda a revelar originalidade e espírito criativo,
num universo poético povoado por imagens impulsivas, carregadas de móbiles
mentais. São como que circunvoluções num território que tangencia os predicativos
surrealistas...
J.A.R. – H.C.
Henry Michaux
(1899-1984)
Desenhar a Passagem do Tempo
...Em lugar de uma visão que excluísse
outras, foi minha intenção desenhar os momentos que constituem a vida de ponta
a ponta, mostrar a frase interior, a frase sem palavras, corda que
indefinidamente se desenrola, sinuosa, e, no íntimo, acompanha tudo o que se
apresenta de fora e de dentro.
Queria desenhar a consciência de
existir e a passagem do tempo. Como se toma o pulso. Ou ainda, mais
especificamente, aquilo que aparece quando, à noite, se repete (mais abreviado
e em surdina) o filme das impressões deixadas pelo dia.
Desenho cinemático.
Restringia-me ao meu, evidentemente.
Mas muito me teria agradado um traçado feito por outros que não eu, percorrê-lo
como um fio maravilhoso com nós e segredos, onde me seria dado ler a sua vida e
ter na mão o seu percurso.
O meu filme pessoal não era mais do que
uma linha ou duas ou três, cruzando-se aqui e ali com outras linhas,
amontoando-se aqui, enlaçando-se ali, guerreando mais longe, enrolando-se num
novelo – sentimentos e monumentos misturados naturalmente – erguendo-se,
altivez, orgulho, ou castelo ou torre... que se podia ver, que me parecia que
tinha de se ver... mas que, para dizer a verdade, quase ninguém via.
A Persistência da Memória
(Salvador Dalí:
1904-1989)
Referência:
MICHAUX, Henry. Desenhar a passagem do
tempo. In: __________. Antologia:
poesia. Tradução e Introdução de Margarida Vale de Gato. Lisboa (PT): Relógio
D’Água, 1999. p. 211.
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