O falecido poeta paulista Haroldo de Campos, irmão de Augusto de Campos,
irrompe neste espaço, para dar vazão a um poema-preleção sobre os aspectos
teóricos e práticos da faina poética. Trata-se do poema “Teoria e Prática do
Poema”, que apareceu, originalmente, em sua coletânea “As Disciplinas”, de
1952.
É do próprio Haroldo de Campos, também, a seguinte nota, a constar na
referência apresentada ao final desta postagem:
No “Sermão da Sexagésima” (1655), onde
usa a expressão “xadrez de estrelas”, o Padre António Vieira, ao polemizar contra
os excessos do “cultismo”, estaria descrevendo, “sem se dar conta, o seu
próprio estilo” de composição em xadrez ou geométrica (cf. António J. Saraiva, ‘O
Discurso Engenhoso’, Perspectiva, 1980) (CAMPOS, 1992, p. 147).
J.A.R. – H.C.
Haroldo de Campos
(1929-2003)
Teoria e Prática do Poema
I
Pássaros de prata, o
Poema
ilustra a teoria do
seu voo.
Filomela de azul
metamorfoseado, (1)
mensurado geômetra
o Poema se medita
como um círculo
medita-se em seu centro
como os raios do
círculo o meditam
fulcro de cristal do
movimento.
II
Um pássaro se imita a
cada voo
zênite de marfim onde
o crispado
anseio se arbitra
sobre as linhas de
força do momento.
Um pássaro conhece-se
em seu voo,
espelho de si mesmo,
órbita
madura,
tempo alcançado sobre
o Tempo.
III
Equânime, o Poema se
ignora.
Leopardo
ponderando-se no salto,
que é da presa, pluma
de som,
evasiva
gazela dos sentidos?
O Poema propõe-se:
sistema
de premissas
rancorosas
evolução de figuras
contra o vento
xadrez de estrelas.
Salamandra de incêndios
que provoca, ileso
dura,
Sol posto em seu
centro.
IV
E como é feito? Que
teoria
rege os espaços de
seu voo?
Que lastros o retêm?
Que pesos
curvam, adunca, a
tensão do seu alento?
Cítara da lingual,
como se ouve?
Corte de ouro, como
se vislumbra,
proporcionado a ele o
pensamento?
V
Vede: partido ao meio
o aéreo fuso do
movimento
a bailarina resta.
Acrobata,
ave de voo ameno,
princesa plenilúnio
desse reino (2)
de véus alísios: o
ar.
Onde aprendeu o
impulso que a soleva,
grata, ao fugaz
cometimento?
Não como o pássaro
conforme a natureza
mas como um deus
contra naturam voa.
VI
Assim o Poema. Nos
campos do equilíbrio
elísios a que aspira
sustém-no sua
destreza.
Ágil atleta alado
iça os trapézios da
aventura.
Os pássaros não se
imaginam.
O Poema premedita.
Aqueles cumprem o
traçado da infinita
astronomia de que são
órions de pena.
Este, árbitro e
justiceiro de si mesmo,
Lusbel libra-se sobre
o abismo, (3) (4)
livre,
diante de um rei
maior
rei mais pequeno.
Elucidário:
(1) Filomela: nome poético do rouxinol;
(2) Plenilúnio: lua cheia;
(3) Lusbel: o anjo mau, satã;
(4) Libra-se: equilibra-se;
suspende-se.
CAMPOS, Haroldo de. Os melhores poemas. Seleção de Inês
Oseki-Dépré. São Paulo: Global, 1992. p. 39-40. (Os Melhores Poemas n. 26)
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