Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Haroldo de Campos – O Poema Como Objeto Teórico e Prático

O falecido poeta paulista Haroldo de Campos, irmão de Augusto de Campos, irrompe neste espaço, para dar vazão a um poema-preleção sobre os aspectos teóricos e práticos da faina poética. Trata-se do poema “Teoria e Prática do Poema”, que apareceu, originalmente, em sua coletânea “As Disciplinas”, de 1952.

É do próprio Haroldo de Campos, também, a seguinte nota, a constar na referência apresentada ao final desta postagem:

No “Sermão da Sexagésima” (1655), onde usa a expressão “xadrez de estrelas”, o Padre António Vieira, ao polemizar contra os excessos do “cultismo”, estaria descrevendo, “sem se dar conta, o seu próprio estilo” de composição em xadrez ou geométrica (cf. António J. Saraiva, ‘O Discurso Engenhoso’, Perspectiva, 1980) (CAMPOS, 1992, p. 147).

J.A.R. – H.C. 
Haroldo de Campos
(1929-2003)

Teoria e Prática do Poema

I

Pássaros de prata, o Poema
ilustra a teoria do seu voo.
Filomela de azul metamorfoseado, (1)
mensurado geômetra
o Poema se medita
como um círculo medita-se em seu centro
como os raios do círculo o meditam
fulcro de cristal do movimento.

II

Um pássaro se imita a cada voo
zênite de marfim onde o crispado
anseio se arbitra
sobre as linhas de força do momento.
Um pássaro conhece-se em seu voo,
espelho de si mesmo, órbita
madura,
tempo alcançado sobre o Tempo.

III

Equânime, o Poema se ignora.
Leopardo ponderando-se no salto,
que é da presa, pluma de som,
evasiva
gazela dos sentidos?
O Poema propõe-se: sistema
de premissas rancorosas
evolução de figuras contra o vento
xadrez de estrelas. Salamandra de incêndios
que provoca, ileso dura,
Sol posto em seu centro.

IV

E como é feito? Que teoria
rege os espaços de seu voo?
Que lastros o retêm? Que pesos
curvam, adunca, a tensão do seu alento?
Cítara da lingual, como se ouve?
Corte de ouro, como se vislumbra,
proporcionado a ele o pensamento?

V

Vede: partido ao meio
o aéreo fuso do movimento
a bailarina resta. Acrobata,
ave de voo ameno,
princesa plenilúnio desse reino (2)
de véus alísios: o ar.
Onde aprendeu o impulso que a soleva,
grata, ao fugaz cometimento?
Não como o pássaro
conforme a natureza
mas como um deus
contra naturam voa.

VI

Assim o Poema. Nos campos do equilíbrio
elísios a que aspira
sustém-no sua destreza.
Ágil atleta alado
iça os trapézios da aventura.
Os pássaros não se imaginam.
O Poema premedita.
Aqueles cumprem o traçado da infinita
astronomia de que são órions de pena.
Este, árbitro e justiceiro de si mesmo,
Lusbel libra-se sobre o abismo, (3) (4)
livre,
diante de um rei maior
rei mais pequeno.


Elucidário:

(1) Filomela: nome poético do rouxinol;
(2) Plenilúnio: lua cheia;
(3) Lusbel: o anjo mau, satã;
(4) Libra-se: equilibra-se; suspende-se.

Referência:

CAMPOS, Haroldo de. Os melhores poemas. Seleção de Inês Oseki-Dépré. São Paulo: Global, 1992. p. 39-40. (Os Melhores Poemas n. 26)

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