Mais uma longa reflexão sobre o universo da arte, desta feita de autoria
do filósofo alemão Arthur Schopenhauer: solitário, misantropo e pessimista,
decerto, mas uma mente que rendeu ‘insights’ prodigiosos à posteridade, como
que a ratificar a máxima (seria aristotélica?”) de que um homem solitário ou é um
deus − ou uma besta.
A arte aqui aparece como um objeto privilegiado, cuja contemplação
configura uma das formas mais refinadas de conhecimento do mundo, a competir
com as ciências e a superá-las, caso se leve em conta o deleite, o enlevo, o
arrebatamento que é capaz de incitar nos que se dispõem a observá-la.
J.A.R. – H.C.
Arthur Schopenhauer
(1788-1860)
A Arte
A arte é uma redenção
– Ela livra da vontade e portanto da dor – Torna as imagens da vida cheias de
encanto – A sua missão é reproduzir-lhe todas as cambiantes, todos os aspectos
– Poesia lírica – Tragédia, comédia – Pintura – Música; a ação do gênio é aí mais
sensível do que noutra arte.
Todo o desejo nasce
de uma necessidade, de uma privação, de um sofrimento. Satisfazendo-o
acalma-se; mas embora se satisfaça um, quantos permanecem insaciados! Demais, o
desejo dura muito tempo, as exigências são infinitas, o gozo é curto e
avaramente medido. E mesmo esse prazer uma vez obtido é apenas aparente:
sucede-lhe outro, o primeiro é uma ilusão dissipada, o segundo uma ilusão que
dura ainda. Nada há no mundo capaz de apaziguar a vontade, nem fixá-la de um
modo duradouro: o mais que se pode obter do destino parece sempre uma esmola,
que se lança aos pés do mendigo, que só conserva a vida hoje para prolongar o
seu tormento amanhã. Assim, enquanto estamos sob o domínio dos desejos, sob o
império da vontade, enquanto nos abandonamos às esperanças que nos acometem,
aos temores que nos perseguem, ele não é para nós nem repouso nem felicidade
amável. Quer nos encarnicemos em qualquer perseguição ou fujamos ante qualquer
ameaça, agitados pela expectativa ou pela apreensão, no fundo é a mesma coisa:
os cuidados que nos causam as exigências da vontade sob todas as formas, não
cessam de nos perturbar e atormentar a existência. Assim o homem, escravo da
vontade, está continuamente preso à roda de Íxion, enche sempre o tonel das
Danaides, é o Tântalo devorado de eterna sede.
Mas quando uma
circunstância estranha, ou a nossa harmonia interior nos arrebata por um
momento à torrente infinita do desejo, nos livra o espírito da opressão da
vontade, nos desvia a atenção de tudo que a solicita, e as coisas nos aparecem
desligadas de todos os prestígios da esperança, de todo o interesse próprio,
como objetos de contemplação desinteressada e não de cobiça; é então que esse
repouso, procurado baldadamente nos caminhos abertos do desejo, mas que sempre
nos fugiu, se apresenta e nos dá o sentimento da paz em toda a sua plenitude. É
esse o estado livre de dores que celebrava Epicuro como o maior de todos os
bens, como a felicidade dos deuses; porque nos vemos por um momento livres da
pesada pressão da vontade, celebramos o Sabat depois dos trabalhos forçados da
vontade, a roda de Íxion para... Que importa então que se goze o pôr do sol da
janela de um palácio, ou através das grades de uma prisão!
Acordo íntimo,
predomínio do puro pensamento sobre a vontade pode produzir-se em todo o lugar.
São testemunhas esses admiráveis pintores holandeses, que souberam ver de um
modo tão objetivo coisas tão pequenas, e que nos deixaram uma prova tão
duradoura de desinteresse e de placidez de espírito nas cenas íntimas. O
espectador não pode observá-las sem se comover, sem se representar o estado de
espírito do artista, tranquilo, sereno, com o maior sossego, tal como era
necessário para fixar a atenção sobre objetos insignificantes, indiferentes, e
reproduzi-los com tanta solicitude; e a impressão é ainda mais forte porque
observando-se a nós mesmos, admiramo-nos do contraste dessas pinturas tão
calmas com os nossos sentimentos sempre obscurecidos, sempre agitados pelas
inquietações e pelos desejos.
Basta lançar um olhar
desinteressado sobre qualquer homem, qualquer cena da vida, e reproduzi-los com
a pena ou o pincel para que logo pareçam cheios de interesse e de encanto, e
verdadeiramente dignos de inveja; mas se tomamos parte nessa situação, se somos
esse homem, oh! então, como muitas vezes se diz, só o diabo a poderia
sustentar. É o pensamento de Goethe:
De tout ce qui nous chagrine dans la
vie
La peinture nous plaît...
Quando eu era novo,
houve um tempo em que me esforçava incessantemente para me representar todos os
meus atos, como se se tratasse de uma outra pessoa − provavelmente para melhor
os gozar.
As coisas só têm
atrativo enquanto nos não tocam. A vida nunca é bela, só os quadros da vida são
belos, quando o espelho da poesia os ilumina e os reflete, principalmente na
mocidade quando ignoramos ainda o que é viver.
* * *
Apoderar-se da
inspiração no seu voo e dar-lhe um corpo nos versos, tal é a obra da poesia
lírica. E é contudo a humanidade inteira, nos seus íntimos arcanos que reflete
o verdadeiro poeta lírico; e todos os sentimentos que milhões de gerações
passadas, presentes e futuras experimentaram e hão de experimentar as mesmas
experiências que se reproduzirão sempre, encontram na poesia a expressão viva e
fiel... O poeta é homem universal: tudo o que agitou o coração de um homem, tudo
o que a natureza humana, em todas as circunstâncias, pôde experimentar e
produzir, tudo que reside e fermenta num ser mortal − é esse o seu domínio que
se estende a toda a natureza. Por isso o poeta pode contar tão bem a
voluptuosidade como o misticismo, ser Angelus Silésius ou Anacreonte, escrever
tragédias ou comédias, representar sentimentos nobres ou vulgares, segundo a
fantasia ou a vocação. Ninguém poderia prescrever ao poeta ser nobre, elevado,
moral, piedoso e cristão, ser ou não ser isto ou aquilo, porque ele é o espelho
da humanidade e apresenta-lhe a imagem clara e fiel do que ela sente.
* * *
É um fato deveras
notável e realmente digno de atenção, que o objeto de toda a alta poesia seja a
representação do lado medonho da natureza humana, a dor sem nome, os tormentos
dos homens, o triunfo da maldade, o domínio irônico do acaso, a queda
irremediável do justo e do inocente: é este um sinal notável da constituição do
mundo e da existência... Não vemos nós na tragédia os entes mais nobres, após
longos combates e prolongados sofrimentos, renunciarem para sempre aos
desígnios que até ali perseguiam com violência, ou desviarem-se de todos os
gozos da vida voluntariamente e com prazer: como o príncipe de Calderón;
Gretchen no Fausto, Hamlet a quem o fiel Horácio seguiria da melhor vontade,
mas que lhe promete ficar e viver ainda algum tempo num mundo tão cruel, tão
cheio de dores, para contar o destino de Hamlet e purificar-lhe a memória;
assim também Joana d'Arc, e a noiva de Messine: todos morrem purificados pelos
sofrimentos, isto é, depois de se extinguir neles a vontade de viver...
O verdadeiro sentido
da tragédia é essa observação profunda, que as faltas expiadas pelo herói não
são as deles, mas as faltas hereditárias, isto é, o próprio crime de existir:
Pues el delito mayor
Del hombre es haber nacido.
A tendência e o
último objeto da tragédia é inclinar-nos à resignação, à negação da vontade de
viver; a comédia, pelo contrário, excita-nos a viver e anima-nos. A comédia, é
certo, como toda a representação da vida humana, coloca-nos inevitavelmente
diante dos olhos os sofrimentos e os lados repugnantes, mas mostra-os como
males passageiros, que acabam por desaparecer numa alegria final, como um misto
de sucessos, de vitórias e de esperanças que triunfam por fim; e além disso faz
sobressair o que há de constantemente alegre, risível, até nas mil e uma
contrariedades da vida, a fim de nos conservar de bom humor seja em que
circunstâncias forem. Afirma portanto, como último resultado, que a vida
considerada no seu conjunto é muito boa, sobretudo agradável e muito divertida.
É preciso, bem entendido, deixar cair o pano depressa sobre o alegre desenlace,
para que se não possa ver o que sucede em seguida; enquanto em geral a tragédia
acaba de tal modo que não pode suceder mais nada.
* * *
O poeta épico ou
dramático não deve ignorar que ele é o destino e que deve ser implacável como
este − ele é ao mesmo tempo o espelho da humanidade e tem de apresentar na cena
caracteres maus e por vezes infames, loucos, tolos, espíritos acanhados, de vez
em quando uma personagem razoável ou prudente, ou bom, ou honesto, e muito
raramente, com a mais singular das exceções, um caráter generoso. − Em todo
Homero, não há, me parece, um caráter verdadeiramente generoso, embora se encontrem
muitos bons e honestos; em Shakespeare, acha-se um ou dois, e ainda assim, na
sua nobreza nada há de sobre-humano, é Cordélia, Coriolano; seria difícil
enumerar mais algum, enquanto os outros se cruzam aí em quantidade... Na Minna
de Barnhelm, de Lessing, há excesso de escrúpulo e de nobre generosidade de
todos os lados. De todos os heróis de Goethe combinados e reunidos,
dificilmente se formaria um caráter de uma generosidade tão quimérica como o
Marquês de Posa.
* * *
Não há um só homem
nem uma só ação que não tenha a sua importância; em todos e através de tudo, se
desenvolve mais ou menos a ideia da humanidade. Não há circunstância na
existência humana que seja indigna de ser reproduzida pela pintura. Por isso se
mostram injustos para com os admiráveis pintores da escola holandesa, quando se
limitam a louvar-lhes a habilidade técnica; com respeito ao resto olham-nos de
cima, com desdém, porque representam a maior parte das vezes fatos da vida
comum e só se liga importância aos assuntos históricos ou religiosos.
Dever-se-ia primeiro pensar que o interesse de uma ação não tem relação alguma
com a sua importância exterior, e que há por vezes entre os dois uma grande
diferença.
A importância
exterior de uma ação avalia-se pelas suas consequências para o mundo real e no
mundo real. A sua importância interior, é a vista profunda que ela nos oferece
da própria essência da humanidade colocando em plena luz certos lados dessa
natureza muitas vezes despercebidos, escolhendo certas circunstâncias
favoráveis em que as particularidades se exprimem e se desenvolvem.
A importância
interior só tem valor para a arte, a exterior para a história. Uma e outra são
absolutamente independentes, e tanto podem encontrar-se separadas como
reunidas. Um ato capital na história pode, considerado em si mesmo, ser da
última banalidade, da última insignificância: e reciprocamente, uma cena da
vida quotidiana, uma cena íntima, pode ter um grande interesse ideal, se coloca
em plena e brilhante luz seres humanos, atos e desejos humanos até aos mais
ocultos recônditos. Sejam quais forem a importância do fim que se prossegue e
as consequências do ato, o traço da natureza pode ser o mesmo: assim, por
exemplo, quer sejam ministros inclinados
sobre um mapa disputando-se territórios e povos, quer sejam os camponeses numa
taberna discutindo por causa de um jogo de cartas ou dados, não importa
absolutamente nada; assim como é indiferente jogar o xadrez com peões de ouro
ou com figuras de madeira.
A música não exprime
nunca o fenômeno, mas unicamente a essência íntima de todo o fenômeno, numa
palavra a própria vontade. Portanto não exprime uma alegria especial ou
definida, certas tristezas, certa dor, certo medo, certo transporte, certo
prazer, certa serenidade de espírito, mas a própria alegria, a tristeza, a dor,
o medo, os transportes, o prazer, a serenidade do espírito; exprime-lhes a
essência abstrata e geral, fora de qualquer motivo ou circunstância. E todavia
nessa quintessência abstrata, sabemos compreendê-la perfeitamente.
* * *
A invenção da
melodia, a descoberta de todos os segredos mais íntimos da vontade e da
sensibilidade humana, é a obra do gênio. A sua ação é aí mais visível que em
qualquer outro assunto, mais irrefletida, mais livre de toda a intenção
consciente, é uma verdadeira inspiração. A ideia, isto é, o conhecimento
preconcebido das coisas abstratas e positivas é neste ponto, como em toda a
arte, absolutamente estéril: o compositor revela a essência mais íntima do
mundo e exprime a sabedoria mais profunda, numa linguagem que a sua razão não
sonâmbula dá respostas claríssimas sobre assuntos, de que, desperta, não tem
conhecimento algum.
O que há de íntimo e
inexplicável em toda a música, o que nos procura a visão rápida e passageira de
um paraíso familiar e inacessível ao mesmo tempo, que compreendemos e que
contudo não lograríamos explicar, é ela dar uma voz às profundas e surdas
agitações do nosso ser, fora de toda a realidade, e por conseguinte sem
sofrimento.
* * *
Assim como há em nós
duas disposições essenciais do sentimento, a alegria ou pelo menos o bom humor,
a aflição ou pelo menos a melancolia, assim a música tem duas tonalidades
gerais correspondentes, o sustenido e o bemol, e conserva-se quase sempre numa
ou noutra. Mas na verdade não é extraordinário que haja um sinal − o bemol −
exprimindo a dor, que não seja doloroso nem fisicamente nem sequer por
convenção, e contudo tão expressivo que ninguém se possa enganar? Por este fato
se pode avaliar a que ponto a música entra na natureza íntima do homem e das
coisas. Entre os povos do norte, cuja existência é submetida a tão rudes
provas, mormente entre os russos, é o bemol que domina, mesmo na música de
igreja.
O allegro em bemol é muito frequente na
música francesa, e muito característico: é como se alguém fosse dançar com
sapatos que o incomodassem. As frases curtas e claras da música de dança de
andamento rápido, só parecem exprimir uma felicidade comum, fácil de atingir; o
allegro maestoso com as suas grandes
frases, exprime um esforço grande e nobre, para um fim distante que se acaba
por atingir. O adágio fala-nos dos sofrimentos de um grande e nobre esforço,
que despreza toda a alegria mesquinha. O que é, porém, mais surpreendente, é o
efeito do bemol e do sustenido. Não é admirável que a mudança de um meio-tom, a
introdução de uma terça menor em lugar de uma maior, dê imediatamente uma
sensação inevitável de dor e de inquietação, de que o sustenido logo nos livra?
O adágio em bemol eleva-se até à expressão da dor suprema, torna-se um queixume
dilacerante. A música de dança em bemol exprime a decepção de uma felicidade
medíocre, que se deveria desdenhar, dir-se-ia que nos descreve a perseguição de
algum fim inferior obtido finalmente depois de muitos esforços e
aborrecimentos.
***
Uma sinfonia de
Beethoven descobre-nos uma ordem maravilhosa sob a desordem aparente; é como um
combate encarniçado, que passado um momento se resolve num belo acordo: é o rerum concordia discors -- uma imagem
fiel e perfeita da essência deste mundo, que gira através do espaço sem pressa
e sem repouso, num tumulto indescritível de formas sem número, que se dissipam
incessantemente. Mas ao mesmo tempo através desta sinfonia falam todas as
paixões, todas as comoções humanas; alegria, tristeza, amor, ódio, medo,
esperanças, com infinitos cambiantes, e contudo perfeitamente abstratas, sem
coisa alguma que as distinga nitidamente umas das outras. É uma forma sem
matéria, como um mundo de espíritos aéreos.
Depois de haver
meditado longamente sobre a essência da música, recomendo o gozo dessa arte
como a mais deliciosa de todas. Não há outra que atue mais diretamente, mais
profundamente, porque também não há outra que revele mais diretamente e mais
profundamente a verdadeira natureza do mundo. Ouvir longas e belas harmonias; é
como um banho de espírito: purifica de toda a mancha, de tudo que é mau,
mesquinho; eleva o homem e sugere-lhe os pensamentos mais nobres que lhe seja
dado ter, e ele então sente claramente tudo o que vale, ou antes quanto poderia
valer.
* * *
Quando ouço música, a
minha imaginação compraz-se muitas vezes com o pensamento de que a vida de
todos os homens e a minha própria vida não são mais do que sonhos de um
espírito eterno, bons e maus sonhos, de que cada morte é o despertar.
Referência:
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte. In:
__________. Dores do mundo. Guia
universitário por Assis Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro-Tecnoprint, [19??]. p.
134-147. (Coleção Universidade)
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