Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Vladímir Maiakóvski: Hino ao Crítico

Num crítico poema dedicado ao crítico – desculpem-me a redundância (rs) –, o poeta futurista russo, Vladímir Maiakóvski, destila todo o seu sarcasmo contra a figura em apreço.

Sua poesia arrasadora relembrou-me um episódio que presenciei no cinema, num filme talvez do cineasta François Truffaut (ou seria Claude Lelouch?), em que um personagem pergunta a outro o que espera fazer num futuro próximo: “dirigir filmes”, responde-lhe o interlocutor. E então o primeiro volta à carga: “e se isso se mostrar inviável?”. “Farei crítica cinematográfica!”, devolve-lhe aquele.

Você percebeu, leitor, a malícia do que está por trás desse diálogo: o diretor do filme está a afirmar que o crítico de cinema é um cineasta frustrado (rs)?! Uma zombaria, uma troça, muito no contexto em que deve ser apreciada a poesia que ora transcrevemos.

J.A.R. – H.C. 
Vladímir Maiakóvski
(1893-1930)

Filho de um guarda-florestal, nasceu e passou a infância na aldeia de Bagdádi, nos arredores de Kutaíssi (hoje Maiakóvski), na Geórgia. Cursou o ginásio de Kutaíssi. Após a morte súbita do pai, a família ficou na miséria e transferiu-se para Moscou, onde Vladímir continuou seus estudos. Fortemente impressionado pelo movimento revolucionário russo e impregnado desde cedo de obras socialistas, ingressou aos quinze anos na facção bolchevique do Partido Social-Democrático Operário Russo. Detido em duas ocasiões, foi solto por falta de provas, mas em 1909-1910 passou onze meses na prisão. Entrou na Escola de Belas Artes, onde se encontrou com David Burliuk, que foi o grande incentivador de sua iniciação poética. Os dois amigos fizeram parte do grupo fundador do assim chamado cubo-futurismo russo, ao lado de Khlébnikov, Kamiênski e outros. Foram expulsos da Escola de Belas Artes. Procurando difundir suas concepções artísticas, realizaram viagens pela Rússia. Após a Revolução de Outubro, todo o grupo manifestou sua adesão ao novo regime. Durante a Guerra Civil, Maiakóvski se dedicou a desenhos e legendas para cartazes de propaganda e, no início da consolidação do novo Estado, exaltou campanhas sani­tárias, fez publicidade de produtos diversos, etc. Fundou em 1923 a revista LEF (de Liévi Front, Frente de Esquerda), que reuniu a “esquerda das artes”, isto é, os escritores e artistas que pretendiam aliar a forma revolucionária a um conteúdo de renovação social. Fez inúmeras viagens pelo país, aparecendo diante de vastos auditórios para os quais lia os seus versos. Viajou também pela Europa Ocidental, México e Estados Unidos. Entrou frequentemente em choque com os “burocratas’’ e com os que pretendiam reduzir a poesia a fórmulas simplistas. Foi homem de grandes paixões, arrebatado e lírico, épico e satírico ao mesmo tempo. Suicidou-se com um tiro em 1930. Sua obra, pro­fundamente revolucionária na forma e nas ideias que defendeu, apresenta-se coerente, original, veemente, una. A linguagem que emprega é a do dia a dia, sem nenhuma consideração pela divisão em temas e vocábulos “poéticos” e “não-poéticos”, a par de uma constante elaboração, que vai desde a invenção vocabular até o inusitado arrojo das rimas. Ao mesmo tempo, o gosto pelo desmesurado, o hiperbólico, alia-se em sua poesia à dimensão crítico-satírica. Criou longos poemas e quadras e dísticos que se gravam na memória; ensaios sobre a arte poética e artigos curtos de jornal; peças de forte sentido social e rápidas cenas sobre assuntos do dia; roteiros de cinema arrojados e fantasiosos e breves filmes de propaganda. Tem exercido influência profunda em todo o desenvolvimento da poesia russa moderna. (CAMPOS; CAMPOS; SCHNAIDERMAN; 1985, p. 167-168).

The Critic
Kim Robert
(Pintora Norte-Americana)

Hino ao crítico

Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.

O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.

Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.

Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.

Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.

E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.

Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.

Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.

Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.

Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?

1915

(Tradução de Augusto de Campos e
Boris Schnaiderman)

Referências:

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (Sel. e Trad.). Nova antologia de poesia russa moderna. 3. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1985.

MAIAKÓVSKI, Vladímir. Hino ao Crítico. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (Sel. e Trad.). Nova antologia de poesia russa moderna. 3. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1985. p. 181-182.

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