Num crítico poema dedicado ao crítico – desculpem-me a redundância (rs) –,
o poeta futurista russo, Vladímir Maiakóvski, destila todo o seu sarcasmo
contra a figura em apreço.
Sua poesia arrasadora relembrou-me um episódio que presenciei no cinema,
num filme talvez do cineasta François Truffaut (ou seria Claude Lelouch?), em
que um personagem pergunta a outro o que espera fazer num futuro próximo: “dirigir
filmes”, responde-lhe o interlocutor. E então o primeiro volta à carga: “e se
isso se mostrar inviável?”. “Farei crítica cinematográfica!”, devolve-lhe aquele.
Você percebeu, leitor, a malícia do que está por trás desse diálogo: o
diretor do filme está a afirmar que o crítico de cinema é um cineasta frustrado
(rs)?! Uma zombaria, uma troça, muito no contexto em que deve ser apreciada a
poesia que ora transcrevemos.
J.A.R. – H.C.
Vladímir
Maiakóvski
(1893-1930)
Filho de um guarda-florestal, nasceu e
passou a infância na aldeia de Bagdádi, nos arredores de Kutaíssi (hoje
Maiakóvski), na Geórgia. Cursou o ginásio de Kutaíssi. Após a morte súbita do
pai, a família ficou na miséria e transferiu-se para Moscou, onde Vladímir
continuou seus estudos. Fortemente impressionado pelo movimento revolucionário
russo e impregnado desde cedo de obras socialistas, ingressou aos quinze anos
na facção bolchevique do Partido Social-Democrático Operário Russo. Detido em
duas ocasiões, foi solto por falta de provas, mas em 1909-1910 passou onze
meses na prisão. Entrou na Escola de Belas Artes, onde se encontrou com David
Burliuk, que foi o grande incentivador de sua iniciação poética. Os dois amigos
fizeram parte do grupo fundador do assim chamado cubo-futurismo russo, ao lado
de Khlébnikov, Kamiênski e outros. Foram expulsos da Escola de Belas Artes.
Procurando difundir suas concepções artísticas, realizaram viagens pela Rússia.
Após a Revolução de Outubro, todo o grupo manifestou sua adesão ao novo regime.
Durante a Guerra Civil, Maiakóvski se dedicou a desenhos e legendas para
cartazes de propaganda e, no início da consolidação do novo Estado, exaltou
campanhas sanitárias, fez publicidade de produtos diversos, etc. Fundou em
1923 a revista LEF (de Liévi Front, Frente de Esquerda), que reuniu a “esquerda
das artes”, isto é, os escritores e artistas que pretendiam aliar a forma
revolucionária a um conteúdo de renovação social. Fez inúmeras viagens pelo
país, aparecendo diante de vastos auditórios para os quais lia os seus versos.
Viajou também pela Europa Ocidental, México e Estados Unidos. Entrou
frequentemente em choque com os “burocratas’’ e com os que pretendiam reduzir a
poesia a fórmulas simplistas. Foi homem de grandes paixões, arrebatado e
lírico, épico e satírico ao mesmo tempo. Suicidou-se com um tiro em 1930. Sua
obra, profundamente revolucionária na forma e nas ideias que defendeu,
apresenta-se coerente, original, veemente, una. A linguagem que emprega é a do
dia a dia, sem nenhuma consideração pela divisão em temas e vocábulos
“poéticos” e “não-poéticos”, a par de uma constante elaboração, que vai desde a
invenção vocabular até o inusitado arrojo das rimas. Ao mesmo tempo, o gosto
pelo desmesurado, o hiperbólico, alia-se em sua poesia à dimensão
crítico-satírica. Criou longos poemas e quadras e dísticos que se gravam na
memória; ensaios sobre a arte poética e artigos curtos de jornal; peças de
forte sentido social e rápidas cenas sobre assuntos do dia; roteiros de cinema
arrojados e fantasiosos e breves filmes de propaganda. Tem exercido influência
profunda em todo o desenvolvimento da poesia russa moderna. (CAMPOS; CAMPOS; SCHNAIDERMAN; 1985, p. 167-168).
The Critic
Kim Robert
(Pintora
Norte-Americana)
Hino ao crítico
Da paixão de um
cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um
rebento raquítico.
Filho não é bagulho,
não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o
batizou: crítico.
O pai, recordando sua
progenitura,
Vivia a contestar os
maternais direitos.
Com tais boas
maneiras e tal compostura
Defendia o menino do
pendor à sarjeta.
Assim como o vigia
cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a
lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou
o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar
fácil e sem sabão.
Quando cresceu, do
tamanho de um bastão,
Sardas na cara como
um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um
leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se
um cidadão.
Será preciso muito para
ele sair da fralda?
Um pedaço de pano,
calças e um embornal.
Com o nariz grácil
como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu
afável do jornal.
E em certa
propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida
suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da
teta das palavras
Ordenhou as calças, o
pão e uma gravata.
Já vestido e calçado,
é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados
dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a
estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de
leve os tornozelos loucos.
Mas se se infiltra na
rede jornalística
Algo sobre a grandeza
de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece
ante a nossa vista
Um enorme lacaio,
balofo e bajulante.
Quando, por fim, no
jubileu do centenário,
Acordares em meio ao
fumo funerário,
Verás brilhar na
cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa
alta, mais alvo do que um lírio.
Escritores, há
muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um
asilo para os críticos.
Vocês pensam que é
mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca
nos artigos?
1915
(Tradução de Augusto de Campos e
Boris Schnaiderman)
Referências:
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de;
SCHNAIDERMAN, Boris (Sel. e Trad.). Nova
antologia de poesia russa moderna. 3. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1985.
MAIAKÓVSKI, Vladímir. Hino ao Crítico. In:
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (Sel. e Trad.). Nova antologia de poesia russa moderna.
3. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1985. p. 181-182.
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