Uma mirada externa sobre as eleições no Brasil: o sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos resenha o seu ponto de vista sobre o que está em
jogo nas eleições para presidente 2014, nomeadamente, na disputa pelo segundo
turno entre Dilma e Aécio.
Não fique você, eleitor brasileiro, a mercê do que produzem a nossa
velha mídia conservadora, pois, notoriamente, está ali para defender os seus
próprios interesses – e o de mais ninguém!
J.A.R. – H.C.
O BRASIL NA HORA DAS DECISÕES
Ganhará as eleições quem for capaz de
mostrar com mais clareza quais são as escolhas e como elas se articulam num
projeto de país verdadeiramente inclusivo, justo e intercultural, apresentando
com mais consistência e credibilidade os meios para colocá-las em prática.
Boaventura de Sousa Santos
(n. 1940)
Em 2015, o Brasil comemora o mais longo
ciclo de vida democrática da sua história: trinta anos. Isso é em si um fato
importante num momento em que o Brasil emerge como uma potência mundial e em
que, por isso, o que se passa no país interessa não só aos brasileiros como ao
mundo no seu conjunto. São trinta anos de progressos extraordinários na
construção de uma institucionalidade democrática que ousou ir para além da
matriz eurocêntrica, combinando democracia representativa com democracia
participativa; na configuração de um sistema judicial independente; na adoção
de políticas públicas que permitiram níveis de redistribuição social nunca
antes alcançados; no enfrentamento da injustiça histórica de longa duração com
concessões de terras e territórios aos povos indígenas e quilombolas, e com
políticas de ação afirmativa no sistema educativo e potencialmente no sistema
de emprego; na tentativa de superar os limites da transição democrática
pactuada no que diz respeito à injustiça histórica de mais curta duração – os
crimes da ditadura militar; na criação de um sistema de educação superior e de
pesquisa científica dinâmico e socialmente responsável; na configuração de uma
política econômica que garantiu estabilidade e níveis elevados de crescimento;
enfim, no desenho de uma postura nas relações internacionais centrada numa nova
concepção dos interesses do país e da região relativamente autônoma diante dos
interesses geopolíticos dos Estados Unidos na região e mesmo no mundo. O
conjunto dessas políticas foi mudando a tal ponto a imagem internacional do
Brasil que, enquanto em 1985, um país em processo de “brasilianização” era um
país condenado, hoje seria certamente um país resgatado.
Alguns dos méritos dessa transformação
se devem a todos os governos desse período, outros (muitos) pertencem aos
governos que se iniciaram com a eleição do presidente Lula em 2003. É um desses
últimos governos que pretende reeleger-se nas eleições do próximo mês de
outubro: o governo da presidente Dilma Rousseff. Em face do exposto acima seria
de prever que o próximo ato eleitoral fosse a consagração fácil do atual
governo. Assim parece não ser e há que se averiguar por quê. Analisemos algumas
das razões principais. Devo dizer, à partida, que se fosse brasileiro votaria
sem hesitações na presidente Dilma, mas não deixaria de lhe enviar alguns
recados na expectativa de fortalecer a minha esperança.
A síndrome da Índia
Em maio, o candidato conservador
Narenda Modi ganhou folgadamente as eleições na Índia, desalojando o Partido do
Congresso, de centro-esquerda, que estava no poder desde 2004. O Partido do
Congresso adotara uma política fortemente neoliberal, ainda que matizada pelo
fato de o Estado indiano, na tradição de Nehru, ser um pesado interventor tanto
na economia como na sociedade. As medidas neoliberais tiveram assim de conviver
com duas condições: políticas de redistribuição de renda com as quais se criou
uma nova classe média e se ampliou o mercado interno; e negociação permanente
com um Estado que paulatinamente foi se rendendo aos imperativos dos grupos
econômicos poderosos por via da corrupção. De modo paradoxal, as duas condições
convergiram na derrota do Partido do Congresso: uma nova classe média,
frustrada pelo fato de seu status não corresponder à qualidade das expectativas
que criara, tornou-se muito crítica das negociatas e do esbanjamento de
dinheiro público de que membros do governo e políticos foram sendo denunciados.
Essa convergência foi ao ponto de alguns analistas terem concluído que o partido
fora derrotado nas urnas pelos grupos sociais que mais tinha beneficiado
durante os dez anos de governo.
Em política é muito arriscado fazer
comparações. O Brasil é um país muito diferente da Índia. As políticas públicas
foram muito mais significativas no Brasil que na Índia, e a eleição de Modi
teve a seu favor outros fatores (por exemplo, de política étnico-cultural) que
felizmente não têm vigência aqui. Ainda assim, as manifestações de junho de
2013 e o clima – ora difuso, ora organizado – de descontentamento em relação
aos investimentos na Copa vieram mostrar que o governo Dilma devia prestar
muita atenção a duas observações sobre o incremento das políticas sociais que
um grande economista, aliás amigo do Brasil, Albert Hirschman, fez há muitos
anos. Segundo ele, o incremento das políticas sociais pode criar frustração
social em duas situações: quando os serviços públicos, ao massificarem-se,
perdem qualidade e deixam de corresponder às expectativas de estratos sociais
ansiosos por poder desfrutá-los pela primeira vez (por exemplo, compare-se a
expansão dramática do ensino universitário público com o aumento muito menos
significativo do real investimento financeiro no setor); e quando os serviços,
por serem de produção burocrática, são culturalmente monolíticos e
organizacionalmente homogêneos, não se adequando às necessidades culturais e
outras de certos grupos sociais (saúde indígena, agricultura camponesa,
transporte urbano e suburbano etc.).
Quem está no poder?
O capital, talvez hoje mais do que em
qualquer período desde a Segunda Guerra Mundial, só confia em governantes que
sejam eles próprios capitalistas ou extensões serventuárias do capital, ou
seja, gente que veja na maximização dos lucros o objetivo central da governança
pública. Ao longo de séculos, o capital habituou-se a negociar com forças por
vezes muito hostis, como aconteceu no imediato pós-guerra europeu, e fê-lo
sempre com muita flexibilidade. Mas sempre a contragosto, e desde a década de
1980 tem vindo a construir a economia mundial cada vez mais autônoma em relação
às políticas nacionais ou regionais (caso da União Europeia), na esperança de,
no momento adequado, fazê-las vergar aos seus interesses, que não são outros
senão a maximização infinita dos lucros. A América Latina, nas duas últimas
décadas, foi administrada por alguns governos que voltaram a impor a negociação
em termos que globalmente pareciam obsoletos. O capital agiu com a habitual
flexibilidade, dessa vez centrada na ideia de que a perda de poder político não
significaria a perda do econômico. E como os capitalistas são mais adeptos do
determinismo econômico do que alguma vez foram os marxistas, viram essa perda
como muito relativa e sempre transitória. Com os governos da última década, o
capital teve muitos lucros, mas só aqueles que a “monotonia das relações
econômicas”, como diria Marx, permite. Ficaram por ganhar os lucros
extraordinários provenientes da acumulação primitiva, das grandes privatizações
e da corrupção, que, por ser tão grande e comum, se torna sinônimo de boa
governança (too big to fail). É a
perda desses lucros extraordinários que está por trás da virulência e da
grosseria com que o capital, pela voz da sua serventuária grande mídia e da
classe política de direita, ataca o governo Dilma, por exemplo, por meio de
insultos de caráter quase racial ou de casta no espaço público. Fazem-lhe saber
que, por mais íntima que se mostre deles ou delas, ela nunca será um deles ou
delas. Numa afirmação grosseira de colonialismo interno, dizem sem o dizerem:
“Mesmo que tenhamos acumulado muito dinheiro com vocês no poder, nunca
aceitaremos o PT, o Lula e qualquer pessoa da sua laia!”.
E o povo? Os governos dos últimos doze
anos chamaram-se em vão governos populares? As classes populares não estiveram
no poder. Estiveram no poder representantes e aliados seus que, no entanto,
dada a natureza anacrônica e antidemocrática do sistema político brasileiro,
entraram em alianças com forças políticas conservadoras que, historicamente
treinadas para dominar o poder, foram sabendo extorquir cada vez mais
concessões que acabaram por desfigurar ou eliminar os programas que mais
potencial tinham para mudar as relações sociais de poder. Permitiram mesmo
provocar retrocessos escandalosos, como foi o caso do novo Código Florestal.
Foram sobretudo criando uma lógica de governança hostil à participação e à
deliberação democráticas em favor de uma lógica tecnocrática, instrumentalista,
nacional-desenvolvimentista. Claro que alianças contranatura acabam sempre por
provocar mudanças de desigual intensidade nos seus parceiros. Na passagem do
governo Lula para o Dilma foi visível a perda de acesso das classes populares
aos governantes em que tinham votado. A presidente Dilma fez questão de manter
uma distância em relação aos movimentos sociais e aos sindicatos que parecia
orientada para estabelecer a marca da sua autonomia em relação ao lulismo, mas
que foi sobretudo entendida por todos como uma mensagem de proximidade em
relação às classes dominantes. Por outro lado, os instrumentos de democracia
participativa que tinham sido a marca do governo popular (orçamento
participativo, conselhos de políticas setoriais, conferências nacionais) foram
perdendo fôlego, capacidade de renovação e, sobretudo, foram relegados a
decidir cada vez mais sobre temas cada vez menos importantes. Os grandes
investimentos e os grandes projetos ficaram fora do alcance da democracia
participativa. A distância entre governantes e governados, e entre
representantes e representados aprofundou-se, habilmente aproveitada pela
grande mídia, que é o grande partido de oposição em toda a América Latina
contra os governos progressistas. Estes têm levado tempo a perceber que, nas
condições do continente, seus erros, por menores ou justificáveis, cobram um
preço muito caro. Daí a necessidade de uma enorme vigilância política por parte
dos partidos que sustentam esses governos. Acontece que a lei de ferro das
oligarquias partidárias atingiu violentamente esses partidos à medida que seus
melhores militantes se transformaram nos piores funcionários. Nada disso é
irreversível. A reforma do sistema político vai estar na agenda, e, num lampejo
de criatividade política (que teria sido mais eficaz se o governo não tivesse
anteriormente mantido tanta distância em relação aos movimentos sociais), a
presidente Dilma chegou a propor uma Assembleia Constituinte, tal como hoje tem
sido proposta nas ruas e praças de tantos países do mundo (no Brasil, o
plebiscito sobre a reforma política). A reativação da democracia participativa
e da participação popular é possível, e o governo deu recentemente mostras de
querer levá-la a sério para além das conveniências eleitorais. A refundação do
Partido dos Trabalhadores é quiçá a tarefa mais difícil, e, se eu pudesse
aconselhar o presidente Lula, dir-lhe-ia que seria nela que ele deveria
investir toda a sua magnífica biografia que construiu para orgulho de
brasileiros e de cidadãos de esquerda de todo o mundo.
O modelo de desenvolvimento
O neoliberalismo fez concessões no
plano político e na perda dos lucros extraordinários, mas conseguiu em
contrapartida dominar cada vez mais a lógica de governança de governos, criando
uma armadilha entre a necessidade de crescimento econômico para financiar as
políticas sociais e de infraestrutura e a submissão a uma lógica de acumulação
dominada pelo setor mais antissocial do capital (o financeiro), centrada na
exploração ecologicamente desastrosa dos recursos naturais (agronegócio,
mineração e megabarragens) e criminosa no que diz respeito aos sacrifícios
inomináveis que impõe a populações camponesas e ribeirinhas, povos indígenas e
quilombolas, expulsando-os de suas terras e territórios, e permitindo que seus
líderes sejam perseguidos e mortos. A resistência popular a essa avalanche sem
precedentes (mesmo incluindo o tempo colonial) e convenções internacionais –
como a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da
OIT e o direito à consulta prévia, livre e informada que ela consagra – são
declaradas sumariamente obstáculos ao desenvolvimento. Esse processo acontece
em todo o continente (e fora dele), e o Brasil não lhe escapa. Todas as
conquistas de justiça histórica da última década estão em risco de perder-se
com a orgia do extrativismo.
Os povos indígenas brasileiros com quem
trabalho e aos quais sou solidário estão perplexos. Sabem que as forças
oligárquicas regionais estão por trás de tantos crimes impunes contra eles, mas
também sofrem com a hostilidade do governo da União e escandalizam-se com o
fato de governos não populares do passado terem homologado muito mais terras do
que o de Dilma. Escandalizam-se ainda ao ver a quase ostentação da cumplicidade
com os representantes da bancada ruralista, tendo, à frente deles, Katia Abreu.
Chocam-se com a paralisação dos processos de demarcação, com a passividade ante
invasões ilegais e violentas e com a criminalização dos povos oprimidos em luta
pela defesa dos seus direitos. Jovens ecologistas, ativistas dos direitos
humanos, movimentos camponeses e urbanos pela agroecologia e pela soberania
alimentar revoltam-se contra a visão estritamente capitalista da terra como
fator de capital, a qual destrói o meio ambiente e arrasa os povos e modos de
vida tradicionais e a biodiversidade que eles defendem e da qual todos nós
dependemos.
A perplexidade aumentará com a entrada
da candidata Marina Silva, conhecida militante ecológica. Participei com ela de
muitas sessões do Fórum Social Mundial e partilho muitas de suas preocupações
ambientais. Mas acho que está em má companhia, num partido onde têm presença os
interesses do grande capital e o agronegócio em grande plano. Nada disso,
porém, basta para reduzir a perplexidade se a presidente Dilma não der sinais
fortes de que uma política de transição para outro modelo de desenvolvimento
social e ecologicamente mais justo está em marcha e que tal política é já
visível em medidas concretas. Para isso é preciso ter a coragem de relançar o
debate sobre o projeto de país. Será um debate agregador, onde se criam
maiorias conscientes e resilientes. Sem isso, Dilma pode ter gente suficiente que
goste de vê-la reeleita, mas não terá gente suficiente para se bater ativamente
por sua reeleição.
O imperialismo norte-americano
É uma ironia da história contemporânea
brasileira que foi com os governos populares que o Brasil se transformou numa
potência mundial com cara própria; afirmou um sistema de relações
internacionais que não passa por Washington; ajudou a definir uma política
regional que, sem deixar de ter alguns traços subimperialistas, para usar a
expressão do grande sociólogo Ruy Mauro Marini, permitiu criar um espaço de
solidariedades e de cumplicidades de recorte anti-imperialista e
anticapitalista; e envolveu-se ativamente na rede de países emergentes (África
do Sul, China, Índia e Rússia) que procuram criar um espaço de autonomia em relação
ao dólar, ao FMI e ao Banco Mundial, que se traduz na recente criação do Novo
Banco de Desenvolvimento. Não se pode imaginar que os Estados Unidos olhem
impávidos e serenos para esses desenvolvimentos que potencialmente afetam seus
interesses. A espionagem sobre a presidente Dilma é apenas a ponta do iceberg,
e a Aliança do Pacífico está longe de ser um contrabalanço eficaz aos supostos
desígnios regionais do Brasil. A ingerência assume hoje formas muito mais sutis
que as intervenções militares do passado. Passam por atividades de
aconselhamento perante acontecimentos extremos ou protestos sociais, de luta
contra o terrorismo, ONGs com fins benévolos apenas na aparência. Uma coisa é
certa: tal como acontece com o capitalismo financeiro nacional, também o
internacional não confia na presidente Dilma e tudo fará para desacreditar seu
governo aos olhos da opinião pública, para o que conta com poderosos aliados
internos.
Os brasileiros e as brasileiras estão
postos perante escolhas que terão consequências nas próximas décadas. Ganhará
as eleições quem for capaz de mostrar com mais clareza quais são essas escolhas
e como elas se articulam num projeto de país verdadeiramente inclusivo, justo e
intercultural, apresentando com mais consistência e credibilidade os meios para
colocá-las em prática. Convém desconfiar das mensagens moralistas, vagas e
traiçoeiras do tipo “Não vamos desistir do país”. Elas escondem o que há de
mais abjeto e noturno no velho bloco de poder oligárquico. Com todas as
limitações, que devem ser reconhecidas e superadas, o que há de novo, digno e
luminoso no Brasil contemporâneo são os governos Lula-Dilma.
Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos é professor
catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
distinguished legal scholar da Faculdade de Direito da Universidade de
Wisconsin-Madison e global legal scholarda Universidade de Warwick. É diretor
do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador
científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Dirige atualmente
o projeto de investigação “Alice – Espelhos estranhos, lições imprevistas:
definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo”.
Seu livro mais recente é Epistemologies of the South. Justice against
epistemicide [Epistemologias do Sul. Justiça contra o epistemicídio], Paradigm
Publishers, Boulder, 2014.
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