Em passagens originárias de “Doutor Fausto”, de Thomas Mann,
temos algumas reflexões sobre os tópicos em epígrafe. Ora são elas provenientes
de comentários do narrador-personagem Serenus Zeitblom, doutor em Filosofia;
ora de seu biografado Adrian Leverkühn, compositor e músico que, à maneira de
um Fausto lendário, ascende com o Terceiro Reich, para 24 anos de realizações
musicais.
“Doutor Fausto” é isso mesmo: uma prodigiosa prosa sobre música e a sua
teorização, diálogos filosóficos, psicologia religiosa, arte em geral, além de
uma não menos proverbial alegoria política.
J.A.R. – H.C.
Doutor Fausto: 1947
(Thomas Mann)
[Serenus Zeitblom]
Ocasionalmente, nós nos tínhamos posto
de acordo, ou melhor, tínhamos aderido à opinião corrente de ser a Filosofia a
rainha das ciências. Entre as demais, segundo constatávamos, ocupava ela aproximadamente
o mesmo lugar que, entre os instrumentos, cabia ao órgão. Supervisionava-as,
estabelecia uma união espiritual entre elas, ordenava e purificava os
resultados de todas as pesquisas científicas, até formarem uma imagem do
universo, uma síntese superior, normativa, a desvendar o sentido da vida, uma
determinação visionária da posição do homem no cosmo (MANN, 1984, p. 108-109).
[Serenus Zeitblom]
Na sua obra, há muita aparência. Indo
mais longe, até se poderia afirmar que ela é por índole aparente, como “obra”.
Tem a ambição de fazer-nos crer que não foi feita e sim se originou, saltando,
tal e qual Palas Atena, da cabeça de Júpiter, plenamente adornada de suas
cinzeladas armas. Mas isso é pura ilusão. Nunca obra alguma nasceu
espontaneamente assim. Pelo contrário, é trabalho, trabalho artístico, em prol
da aparência, e agora se pergunta se, na situação atual de nossa consciência,
de nosso conhecimento, de nosso senso de verdade, esse jogo continua lícito,
espiritualmente possível, digno de ser levado a sério; pergunta-se se a obra
como tal, a criação autônoma, harmoniosa, cerrada em si, ainda mantém uma
relação legítima com a total insegurança, com a problematicidade, com a
ausência de harmonia de nossas condições sociais; pergunta-se se toda a
aparência, até a mais bela, e justamente a mais bela, não se transformou nos
dias de hoje em mentira (MANN, 1984, p. 242).
[Adrian Leverkühn]
Flores de gelo, ou flores de amido,
açúcar e celulose - ambas são Natureza, e apenas resta saber qual dessas manifestações
toma-a merecedora de elogios mais altos. Teu pendor, meu amigo, para ir em
busca do objetivo, da chamada verdade, e para tachar o subjetivo, a vivência
pura, de desprovidos de valor, é deveras próprio de um pequeno-burguês, e
cumpre superá-lo. Tu me vês, logo existo para ti. Vale então a pena perguntar
se realmente existo? Não será real aquilo que produz efeitos? Não serão verdade
a vivência e o sentimento? O que te exalta, o que aumenta tua sensação de força
e poder e domínio, eis a verdade, com os diabos! Ainda que, do ponto de vista
da virtude, seja dez vezes mentira! O que digo significa que uma inverdade
suscetível de intensificar as energias equivale a qualquer verdade esterilmente
virtuosa. E tenho para mim que uma doença criativa, propiciadora de gênio, uma doença
capaz de cavalgar por cima de quaisquer obstáculos, saltando em audaciosa
ebriedade de rochedo em rochedo, agrada mais à vida do que a saúde que se
arrasta a pé. Nunca ouvi besteira maior do que a que afirma que do mórbido só
pode provir o mórbido. A vida não está cheia de escrúpulos, e não se interessa
nem um pouquinho pela moral. Apossa-se do audaz produto da doença, devora-o,
digere-o, e, no momento em que o assimilar, ele virará saúde. Diante do fato da
eficiência vital, meu querido amigo, extingue-se qualquer distinção entre
doença e saúde. Toda uma horda, toda uma geração de rapazes receptivos, sadios
como mais ninguém, precipita-se sobre a obra do génio mórbido, do homem que foi
genializado pela doença. Admiram-na, encomiam-na, glorificam-na, levam-na
consigo, transformam-na entre si, legam-na à Cultura que não se alimenta apenas
de pão feito em casa, senão também de dons e venenos fornecidos pela farmácia “Aos
Beatos Apóstolos” (MANN, 1984, p. 328).
[Serenus Zeitblom]
O gênio é uma forma de energia vital, profundamente
conhecedora da doença, nela abeberada e, por meio dela, criativa (MANN, 1984, p. 480).
Referência:
MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984. (Coleção ‘Grandes Romances’)
Nenhum comentário:
Postar um comentário