Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Mario Benedetti - O Verbo

Um expressivo poema do escritor, poeta e ensaísta uruguaio Mario Benedetti é o que ora trazemos aos leitores deste bloguinho. Comporta ele uma paródia à passagem introdutória do Evangelho de João, mas com nítidas conotações políticas, haja vista que a poesia faz alusões aos regimes de exceção, comandados por militares, nos idos dos 60 e 70 do século passado, neste lado da América.

 

Na antologia de onde o extraímos, o poema se encontra agrupado na seção “Letras de Emergência (1969-1973)”, a compor a quota denominada “Versos para Ruminar”.

 

Note-se, finalmente, que Benedetti pertence à linha de poetas que não são afeitos a muita pontuação em seus textos, deixando-os mais desembaraçados, com o que se força o leitor a fazer um exercício mental de interpretação bem mais percuciente.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Benedetti

(1920-2009)

 

El Verbo

 

En el principio era el verbo

y el verbo no era dios

eran las palabras

frágiles transparentes y putas

cada una venía con su estuche

con su legado de desídia

era posible mirarlas al trasluz

o volverlas cabeza abajo

interrogarlas en calma o en francés

ellas respondían con guiños cómplices y corruptos

qué suerte unos pocos estábamos en la pomada

éramos el resumen la quintaesencia el zumo

ellas las contraseñas nos valseaban el orgasmo

abanicaban nuestra modesta vanidad

mientras el pueblo esse desconocido

con calvaria tristeza decía no entendemos

no saber de qué hablábamos ni de qué callábamos

hasta nuestros silencios le resultaban complicados

porque también integraban la partitura excelsa

ellas las palabras se ubicaban y reubicaban

eran nuestra vanguardia y cuando alguna caía

acribillada por la moda o el sentido común

las otras se juntaban solidarias y espléndidas

cada derrota las ponía radiantes

porque como sostienen los latinoamericanos del boul mich

la gran literatura sólo se produce en la infelicidad

y solidarias y espléndidas parían

adjetivos y gerúndios

preposiciones y delírios

con los cuales decorar el retortijón existencial

y convertirlo en oda o nouvelle o manifiesto

las revoluciones frustradas tienen eso de bueno

provocan angustias de un gran nivel artístico

en tanto las triunfantes apenas sí alcanzan

logros tan prosaicos como la justicia social

 

en el después será el verbo

y el verbo tampoco será dios

tan solo el grito de vários millones de gargantas

capaces de reír y llorar como hombres nuevos y mujeres nuevas

 

y las palabras putas y frágiles

se volverán sólidas y artesanas

y acaso ganen su derecho a ser sembradas

a ser regadas por los hechos y las lluvias

a abrirse em árboles y frutos

a ser por fin alimento y trofeo

de un pueblo ya maduro por la revolución y la inocência.

 

In the Beginning was the Word

(Ivo Medek: artista tcheco)

 

O Verbo

 

No princípio era o verbo

e o verbo não era deus

eram as palavras

frágeis transparentes e mundanas

cada uma vinha com seu estojo

com seu legado de desídia

era possível examiná-las à contraluz

ou virá-las de cabeça para baixo

interrogá-las com calma ou em francês

elas respondiam com piscadelas cúmplices e corruptas

que sorte uns poucos estávamos na pomada(1)

éramos o resumo a quintessência o sumo

elas as contrassenhas nos valsavam o orgasmo

refrescavam nossa modesta vaidade

enquanto o povo esse desconhecido

com angustiosa tristeza dizia não entender-nos

não saber de que falávamos nem de que calávamos

até nossos silêncios lhe resultavam complicados

porque também integravam a partitura excelsa

elas as palavras se assentavam e reassentavam

eram nossa vanguarda e quando alguma caía

espicaçada pela moda ou pelo sentido comum

as outras se juntavam solidárias e esplêndidas

cada derrota as punha radiantes

porque como sustentam os latino-americanos do boul mich(2)

a grande literatura somente é produzida na infelicidade

e solidárias e esplêndidas concebiam

adjetivos e gerúndios

preposições e delírios

com os quais logravam decorar o espasmo existencial

e convertê-lo em ode ou nouvelle(3) ou manifesto

as revoluções têm isso de bom

provocam angústia de um grande nível artístico

enquanto as triunfantes apenas sim alcançam

realizações tão prosaicas como a justiça social

 

por fim será o verbo

e o verbo tampouco será deus

tão somente o grito de vários milhões de gargantas

capazes de rir e chorar como homens novos e mulheres novas

 

e as palavras mundanas e frágeis

tornar-se-ão sólidas e artesãs

e talvez ganhem seu direito a ser semeadas

a ser regadas pelos fatos e pelas chuvas

a abrir-se em árvores e frutos

a ser por fim alimento e troféu

de um povo já maduro para a revolução e a inocência.

 

Notas:

 

(1)  Aparentemente, trata-se de uma gíria, dando a entender que algumas pessoas estavam na condição de promover certas coisas ou ideias.

 

(2) Certamente uma referência ao Boulevard Saint-Michel, em Paris, localizado no Quartier Latin, uma área da cidade bastante frequentada por latino-americanos.

 

(3)  Outra palavra de origem francesa: notícia, novidade; na literatura, novela ou romance – possivelmente o sentido que o poeta buscou atribuir à palavra no contexto de seu poema.

 

Referência:

 

BENEDETTI, Mario. El verbo. In: __________. Antología poética. Introducción de Pedro Orgambide. Buenos Aires (AR): Editorial Sudamericana, 1994. p. 102-104.

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